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125 anos de Dom Casmurro: o bem e o mal no engenho novo

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          “Te perdoo, por fazeres mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém faz. (…). Por contares minhas horas nas minhas demoras por aí.” (“Mil perdões”, de Chico Buarque). Música para o belo filme de Braz Chediak, da obra de Nelson Rodrigues de 1957, “Perdoa-me por me traíres”, 1980. A tragédia dos casamentos transformados em solidão, às vezes transformados em processos criminais. A perigosa vida a dois.

          Parece loucura, não é? Colocar Dom Casmurro no divã! Um dos personagens mais comoventes da história da literatura ocidental, da obra sem paralelo de Machado de Assis (“Dom Casmurro”, 1899 – publicado em livro, pela primeira vez, em 1900). Joaquim Maria Machado de Assis, jornalista, cronista, teatrólogo, o Bruxo do Cosme Velho, mestiço, conhecido apenas pelos nomes de família, o lugar dramático de ser filho!  Lembrando uma passagem de “O Violinista no Telhado”, o célebre musical de 1972, poderíamos dizer que todos nós estamos tentando manter o equilíbrio, no telhado, tocando uma linda melodia sem quebrar o pescoço. Dom Casmurro é o Bentinho de pescoço quebrado, transformado por Machado num grande fenomenologista da alma humana.

          Para além do tribunal do júri que se instaurou sobre a suposta traição de Capitu, outras questões talvez mais importantes e essenciais se apresentam. Como se segue: O jovem Bento Santiago já continha em si o trágico Dom Casmurro? A infância em Matacavalos já continha as determinações do futuro Engenho Novo? O carvalho adulto e solitário já contém em sua semente o seu destino?!

           Assim, Dom Casmurro não está dissociado de sua origem, pré-Capitu. Lembrando que “engenho” nos remete a maquinações mentais, argumentos supostamente lógicos que se apoderam do pensamento com poderes de realidade, uma onda traiçoeira que nos arrasta para longe de nós mesmos, às vezes sem volta.

          Estamos acompanhados pelo Dr. José Leme Lopes (1904-1990), esquecido autor, psiquiatra do Rio de Janeiro, que nos deixou o brilhante “A Psiquiatria de Machado de Assis”, de 1974. Nesse livro, Leme Lopes nos traduz, a nós pessoas comuns, a riqueza da psicanálise da primeira metade do século 20, conceitos essenciais de Freud e Melanie Klein. No caso aqui, o ciúme com raízes arcaicas, tecido por fios inconscientes, a sofrida construção na infância das relações internas consigo mesmo e com o mundo habitado. Tudo leva a crer que carregamos uma espécie de força contrária limitante para o crescimento e a vida adulta. Não sei. Édipo?! Talvez. Sem condições de sobrevivência, arrastamos vítimas para o nosso naufrágio.

          As pessoas que sofrem de transtorno da personalidade sabem tudo sobre os outros, mas não sabem quase nada sobre si mesmas. Vigiam, punem, exigem, são estrategistas, mas não sabem nada sobre si mesmas, a única coisa que de fato precisamos saber. Vem-me à lembrança o filme “A Viagem de Chihiro”, 2001, de Hayao Miyazaki, sobre uma criança que assiste à autodestruição dos pais, porcos obesos comilões. As histórias de terror do cinema de Miyazaki revestidas de contos infantis. Não existe nada mais aterrorizante para uma criança do que assistir impotente à autodestruição e o enlouquecimento dos pais. Talvez este seja o drama de Ezequiel, o filho do casal Bentinho/Capitu, sem forças diante da tragédia anunciada. Bentinho Santiago estava pondo a família em risco, a mulher e o filho, o casamento, e a si próprio, transformando-se num ser sombrio, consumido pelo sofrimento, um homem falido que perdeu a própria alma. “O andar calado, aborrecido pelo ciúme, em direção ao suicídio.”

          Para Melanie Klein (1882-1960), a mais importante psicanalista pós-Freud, confundir o prazer da boca com o peito da mãe sentido como bom nos leva à idealização da mãe e do mundo externo. Isto nos leva a perpetuar a dissociação das vivências interno/externo, buscando compulsivamente o bom no mundo, fora de si. Isso se estende também aos sentimentos maus, de frustrações, projetados como se de fora o fossem. Com esta dissociação ficamos “alienados” das nossas vivências internas, lugar, afinal, no qual acontece o bem e o mal. “Quando amo você eu sinto que o caos de existir não voltará nunca mais”, diz Otelo, de Shakespeare, inevitável associação à obra de Machado. O que nos leva a pensar que “amar” pode ser apenas responsabilizar alguém sobre o meu bem-estar pleno, individual. Complicado! Adultos, funcionamos como a criança que um dia fomos, gostamos da casa em ordem e da mesa posta, dormimos em berço esplêndido, desde que alguém cuide disso.

          A personalidade de Bentinho parece ter se fixado na infância, movido pelos sentimentos de inferioridade diante do objeto amoroso idealizado. Como a criança que ganha a primeira bicicleta e ainda não sabe usar, se sentindo incapaz de cuidar dos pais inacessíveis, lidando com coisas das quais está excluído. Amar alguém pode ser o maior problema ao longo da vida de uma pessoa, por não saber cuidar. Certa vez, um paciente que acompanhei por vários anos, tido como esquizofrênico, disse-me o seguinte: “Olha, hoje eu ganhei um petroleiro, mas eu devolvi… não é?  Eu não entendo nada de navio petroleiro.”  Risos à parte, esta pessoa bastante sofrida estava resumindo sua tragédia. Não é só ganhar, mas quando e como ganhar: “Ganhei a vida, mas não entendo nada disso, devolvi, resolvi ficar com a loucura, sozinho com os meus delírios.”

          Bentinho tece seu ciúme de pequenos detalhes, movido pelo sentimento de inferioridade diante do amor. Qualquer elemento externo, frases, algum nome, até mesmo algo que não foi dito, vai se tornando arcabouço da estrutura delirante, suportes dos sentimentos infantis de incapacidade. Criança numa “terra de gigantes”. O ciúme é a confirmação da incapacidade infantil, espécie de Complexo de Édipo tardio, reedição da solidão da infância. “Te perdoo por quereres me ver aprendendo a mentir, por ergueres a mão… por me amares demais.” (Mil Perdões, de Chico Buarque) “Te perdoo por te trair. Te perdoo porque choras quando eu choro de rir.”

          Nosso Bento, Bento Santiago, era filho único de uma mãe que perdera o primeiro filho. Tornou-se órfão de pai ainda criança. A mãe, na gestação, o prometeu à vida eucarística com medo de uma nova gravidez não levada a termo. A mãe, insegura de sua maternidade se deixa influenciar por terceiros, ficando assim sem função materna definida. Na tentativa de proteger o filho, o expõe a riscos, negociando uma maternidade incondicional, revestindo-se de “santa em vida”. Bentinho estava aprisionado numa maternidade neurótica, a mãe escondia publicamente o seu desejo íntimo de morte do filho. No medo excessivo de perder o objeto, acabamos quebrando ao invés de cuidar. A dedicação do filho ao divino é uma espécie de confissão dos medos homicidas da mãe contra o filho, talvez uma terceirização do enlouquecimento. Como o somos todos nós, Bentinho nasceu predestinado à morte. Só por Deus!

          No seminário Bentinho se tornou amigo/irmão de Ezequiel Escobar, “amigos inseparáveis”, “pra vida toda”. Conversam sobre tudo, a profissão, o futuro, a atração pelas mulheres. Depois de casados, combinam viagens em conjunto, padrinhos dos filhos. Bento batizou seu único filho com o nome do amigo, “Ezequiel”. Escobar se casou com Sancha, Bento com Capitulina, vizinha de infância, indicada por José Dias, um frequentador da casa da família, “amigo da casa” como se diz, sempre elogioso e portador dos melhores predicados sobre a moça. Carreira, cargos e casamento garantidos, tudo num único e mesmo ato.

          O ciúme é um processo insidioso de confinação e cárcere privado. Amiúde, o casamento, no início uma capa protetora e de cuidados, torna-se aos poucos um exercício de poder, no qual um dos componentes do casal assume o controle total sobre o outro. Controle sobre a vida íntima, os sonhos, os desejos, as potencialidades, e a relação com o mundo. O ciumento “vende’ uma capacidade falsa sobre si. Essa é a base sobre a qual muitos casais constroem casamentos estéreis, sem criatividade. Bentinho sofria de ser casado com uma pessoa desconhecida, apesar de ser sua vizinha. Uma pessoa que não era ele próprio. Nesse caso, a única solução possível é a anulação de uma das duas pessoas.

          A capacidade do outro, seus resultados intelectuais, econômicos, suas relações com amigos, aos poucos vão se tornando comprovações íntimas, e inconfessáveis, de evidente traição. “Bento quer uma exclusividade da atenção da mulher, que, distraída de suas lições de astronomia à janela, olha o mar. Ciúmes do mar, pois!!” Esses pequenos ciúmes derrubariam tudo, e iriam por abaixo o mundo ptolomaico de Bentinho. As estrelas e o trato com as pessoas, a construção cósmica amadorística de Bentinho estavam se tornando obsoletas ao seu próprio autor.

          “Cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou velho, me enchia de desconfiança e temor.” Bentinho estava marcando encontro com a sua solidão, com a sua versão Casmurro, e com o enlouquecimento.

          Capitu aos poucos se esquiva de Bentinho, com desculpas, alegando pretextos. Os encontros com o amigo Escobar tornam-se objetos de suspeitas, coisas combinadas sem ele o saber; e os esquecimentos de Capitu, músicas, coisas dos dois que ela já não se lembrava mais. Capitu teria se tornado uma leviana?!

          Dúvidas sobre dúvidas. Bentinho perdia o sono. Passou a achar estranha a própria mãe. E chegou a achar que Ezequiel, seu filho, se comportava mais como Escobar, o jeito de andar, o meneio da cabeça, a suposta semelhança física, tudo parece confirmar a suspeita de paternidade. A amizade com o casal Escobar/Sancha, até então um mar de rosas, torna-se um tormento, um mar de dúvidas, e um oceano de ciúme.

          Algumas análises literárias indicam que Bentinho nutria atração de infidelidade secreta por Sancha, projetadas defensivamente na relação Capitu/Escobar. Há também quem diga que Bentinho transferia para Capitu seus desejos homossexuais em relação a Escobar. A situação ganha aspectos perversos quando, no velório de Escobar, no qual todos choravam muito, Capitu contém as lágrimas, e ampara totalmente a viúva. Afinal, era apenas um cadáver! Bentinho vê nisso a infalível comprovação da infidelidade da esposa. Percebe até um “sutil” olhar de amor entre a mulher e o cadáver!!

          Bento Santiago caiu no mundo dos fantasmas, da melancolia, dos impulsos suicidas e assassinos, tornou-se um velho esquisito, sombrio e isolado, sem ligações amorosas e cheio de manias, o solitário do Engenho Novo, o bairro no qual viveu seus últimos dias. O processo delirante transformara o Bentinho puro, lerdo no despertar do instinto sexual, o Bentinho cordial, de paz, incapaz de fazer o mal, em alguém que escondia dentro de si a semente da intolerância e do ressentimento. Bentinho mentia para todos, dentro dele havia alguém capaz das piores coisas, um Casmurro corroído pelo delírio. Onde todos viam Bentinho, no seu íntimo, através do espelho curvo da loucura, via apenas Dom Casmurro. Era apenas um homem encoberto, que nunca chegou à plenitude de se realizar como pessoa.

          Dom Casmurro construiu uma relação de ódio com o casamento e, por derivação, com toda a humanidade. Tudo aquilo que vem do homem está de antemão sob suspeita, o homem é a personificação do mal. O ciúme transforma as relações humanas em atos suspeitos, condenados pela perversão e obscenidade, com um pouquinho de inveja. Machado de Assis se antecede à psicanálise sobre as raízes psicológicas do enlouquecimento.          

          No romance não existe nenhum ato de violência explicita. Nenhuma cena de sangue num bar numa esquina da Avenida São João. Mas não é bem assim. Como acontece nas tragédias gregas, nas quais é comum a morte de um personagem ser anunciada por algum mensageiro, Machado de certo modo protege seu personagem. O destino da família acontece à distância, relatado por cartas. Bentinho envia a mulher e o filho para o exterior. Ezequiel torna-se arqueólogo, e veio a falecer jovem, de tifo, em Jerusalém a trabalho. Capitu teria cometido suicídio por envenenamento. Os personagens apenas desaparecem da história, sem crimes, e à distância.  

          Novos entendimentos se abrem. Por associação sonora entre os nomes Ezequiel e Ismael chegamos ao filho de Abraão com a escrava Agar, tido como filho ilegítimo da Promessa, ambos, filho e mãe, expulsos para morrerem no deserto. Abraão tinha alguma inclinação para o filicídio, atentou também contra a vida de Isaac, seu filho com Sarah. Assim surgia uma nova nação, o povo judeu, apoiada em dúvidas, ambivalências e tragédias familiares. Ezequiel, de Bentinho, sofre do mesmo mal, não reconhecido pelo pai, os dois, filho e mãe, têm o mesmo destino bíblico, expulsos de casa sob risco de vida.

          Conta a história que Ismael salva-se da morte descobrindo um poço à distância de um tiro de flecha. Isso não só lhe teria salvado a vida, mas o teria tornado um exímio flecheiro. Uma lição de psicanálise, o sofrimento transformado em bem. Aquilo que me coloca em risco é aquilo que me salva. Ismael é considerado o pai das nações árabes, não é pouco.

          A obra de Machado de Assis se dobra sobre si mesma. O autor, à maneira de Ezequiel, torna-se um escavador do passado, escavando através da palavra. E, como Ismael, torna-se um flecheiro. Escrever é a flecha que Machado lança no tempo, como um ato de sobrevivência. A situação claustrofóbica e asmática do romance, Dom Casmurro encarcerado em si mesmo, encontra respiração simbólica. Freud tinha paixão pela arqueologia e as culturas antigas, a psicanálise construída por ele tem vocação para a pesquisa do tempo esquecido, a procura dos pais dentro do inconsciente dos filhos. Machado de Assis intui a psicanálise como o bebê intui a existência do peito, há de haver um poço no deserto.

          Somente recentemente, ao assistir o documentário “Elis e Tom: Só tinha de ser com você” (2023) compreendi “Águas de março”, de Tom Jobim (1972). Depois de 50 anos ouvindo aquela bela e estranha letra! “Águas de março” é sobre o casamento. Uma música para ser cantada a dois, um casal. Tinha de ser com você.  “O mistério profundo, é o queira ou não queira. É o fundo do poço, no rosto o desgosto, um pouco sozinho. São as águas de março fechando o verão.” As dores e alegrias da vida a dois.

          O drama, e a tragédia, de Bento/Dom Casmurro está concluído. Bentinho não conseguiu realizar a sua pessoa plena, não conseguiu usufruir do bem da vida adulta, do casamento e da companhia de uma outra pessoa que não ele; não conseguiu se humanizar através do outro e do sofrimento, a “benção” de aprender a vida com a vida de outra pessoa. Bento Santiago viveu num mundo sem pessoas, cercado de objetos inanimados e de dogmas delirantes, fixado na infância, encantado numa espécie de conto de fadas para sempre. 

          Dr. Leme Lopes, grande conhecedor da mente humana, não nos ensina somente psicanálise, mas também nos ensina a redenção e o amor por este ser que vivia entre fantasmas, ele próprio uma sombra de si mesmo, calado, envelhecendo sozinho. “Com Dom Casmurro aprendemos as amarguras e as delícias do amor, os desvios dos sentimentos mal implantados e o terrível vazio da personalidade.” Um personagem clássico que por vias tortas nos apresenta um lado importante da humanidade que não estamos muito acostumados a reconhecer. Bentinho se afogou nas águas de março, foi engolido pela ressaca e arrastado para a solidão escura do mar.

          Bento Santiago amou intensamente como uma criança, e tropeçou, e se atrapalhou como um adulto. “É pau, é pedra, é o fim do caminho, um pouco sozinho”. “Na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido, e o meu sapato inda pisa no teu”, só Bentinho não viu. O bem e o mal, conflitos eternos que constituem o sofrimento da mente humana, nunca estiveram tão perto quanto no Engenho Novo.

 

Clarisvaldo Rapeli é psiquiatra, diretor técnico da Villa Cervantes – Saúde Mental Assistida e psicanalista membro da SBPSP.                                     

 

Imagem: Machado aos 57 anos, 1896 (Fonte: Wikipedia

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