Uma ilusão de ter a mesma ilusão
Home Blog geral Uma ilusão de ter a mesma ilusãoRegina Maria Rahmi
Em O Mal-estar na Civilização (1930/2010), Freud faz uma importante ligação entre subjetividade e cultura, enfatizando o sofrimento psíquico diante da impossibilidade de o amor conseguir uma completa satisfação quando o prazer está ligado à escolha amorosa. Para ele, o sofrimento aparece como consequência do desprezo, da perda de um laço amoroso.
No auge do enamoramento, borrando-se as fronteiras entre o eu e o outro, os amantes agem por vezes como se fossem um só. Em “Eu te amo” (1980), Chico Buarque canta:
Se nós, na travessura das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Adentrando-se um território de complexidades e incertezas:
Gradiva é nome do livro de Jensen analisado por Freud (1907/1996). Nele, o autor narra a história do jovem arqueólogo Norbert Hanold, que descobre, num museu em Roma, um relevo que o atrai e do qual obtém uma cópia em gesso. A escultura representa uma jovem caminhando, cujo vestido esvoaçante deixa entrever seus pés calçados em sandálias. O interessante aí é o que o relevo desperta em Norbert. Com o resultado de suas fantasias, o arqueólogo conclui que o modo de andar da Gradiva não é encontrável na realidade, o que o enche de tristeza e desânimo. Pouco depois, tem um sonho no qual eles se encontram em Pompeia, no dia da erupção do Vesúvio, testemunhando a destruição da cidade. A Gradiva desaparece, e Norbert continua procurando por ela, no decorrer do texto Freud faz importantes considerações a respeito se ele estaria vendo, delirando ou sonhando. Posteriormente, em um longo e complexo processo, o rapaz começa a tecer uma ligação entre a Gradiva e um amor de sua infância, Zoe. Ele havia associado a mulher idealizada, a Gradiva que o fascinava à menina da infância. Como triunfo do amor, aquilo que era belo nos seus sonhos foi finalmente reconhecido.
As lembranças das relações infantis de Norbert com a amiga de andar gracioso estavam no esquecimento. Diante do achado arqueológico, o que ele viu tinha ligações com a imagem do passado.
O herói da Gradiva é um enamorado. Ele sonha/delira o que outros apenas evocariam. A Gradiva, figura daquela a quem ele ama, é percebida como pessoa real. Zoe não quebra imediatamente essa ilusão, não o acorda bruscamente do sonho.
No território da arqueologia amorosa, busca-se encontrar as marcas dos primeiros amores, repetições de experiências infantis presentes nas escolhas amorosas e, de maneira singular, o desejo do reconhecimento e do amor do outro. Seria a órbita narcísica inerente ao amor?
Entre o encanto do encontro e a desilusão que se apresente, o outro encontrado nem sempre se mantém como o Outro sonhado. Com isso, surgem algumas indagações: qual é o grau de tolerância ante a percepção de que o outro tem existência própria e não alberga somente nossas projeções? Qual é o espaço para a alteridade?
Nas relações afetivas, pelo encontro de duas subjetividades, a turbulência estará sempre presente, embora nem sempre explicitada – suas origens são desconhecidas. Tomo como exemplo uma cena comum. Após uma calorosa discussão, um diz ao outro: “Afinal, por que mesmo estamos discutindo?”
No conflito, provavelmente o desconhecido implícito esfumaçou o conhecido explícito. Pela interferência do desconhecido em nós, e no outro também, surgem inquietações e novas descobertas. O jogo entre implícito e explícito talvez seja a chama da tolerância e da curiosidade em relação ao outro que se apresenta.
Em “Arte de amar” (2013, p. 224), Manuel Bandeira diz:
As almas são incomunicáveis
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo
Porque os corpos se entendem, mas as almas não
Referências
Bandeira, M. (2013). Antologia poética. São Paulo: Global.
Buarque, C. & Jobim, T. (1980). Eu te amo [Gravada por Chico Buarque]. In Chico Buarque: vida [LP].
Polygram; Philips. Recuperado em 4 jul. 2019, de www.chicobuarque.com.br/letras/euteamo_80.htm.
Freud, S. (1996). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 9, pp. 17-88). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1907) Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 18, pp. 13-122). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)
Regina Maria Rahmi é Psicanalista, Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, integra a Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP, a Diretoria de Atendimento à Comunidade da SBPSP e o corpo editorial da Revista IDE.
Imagem: Shutterstock.com