A estrada da vida
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“O que faz andar a estrada? É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos,
para nos fazerem parentes do futuro
(FALA DE TUAHIR)”.
Mia Couto em “Terra Sonâmbula” (1993).
Mia Couto, com sua escrita poética e sensível, relaciona o sonhar com movimento, com um entrelaçamento entre o passado, o presente e o futuro. O sonhar com existir, pertencer, ser e tornar-se, “indispensável para seguir vivendo, mesmo nas condições mais adversas”, como destacado na contracapa de seu livro “Terra Sonâmbula” que fala de guerra, violência, identidade e esperança.
“Os sonhos são importantes. Eles podem ser uma maneira de abrir uma janela, deixando o ar tóxico sair”. Esta frase, do filme “A Cabana (The Shack)” baseado no livro de William P. Young (2007), que traz o dolorido processo de luto de um pai com a morte da filha, refere-se à importância do sonhar no turbulento processo de luto, que envolve o contato com agonias, fantasmas, deuses e demônios. Com a passagem do tempo, a possibilidade de uma elaboração pode iluminar a escuridão e o momento preciso de onde se está.
Normalmente, associamos o luto à morte de alguém, mas o luto é uma experiência bastante ampla e complexa, presente nas mais diversas situações da vida, desde a infância até a vida adulta. Envolve mudanças, separações, perdas e transformações, a partir das quais se dá a maturação de nosso desenvolvimento emocional.
Nossa primeira experiência de desamparo e separação (do corpo materno) é o nascimento. Embora o bebê ainda não se perceba separado da mãe, a experiência do nascimento deixa marcas inconscientes, pois introduz mudanças significativas no ritmo vivido durante a gestação: o bebê passa a ter que respirar com os próprios pulmões, sugar o leite materno, além de viver uma mudança gravitacional quando deixa de ser sustentado por todos os lados pelo líquido amniótico para ser sustentado de baixo para cima por quem cuida dele.
Desde bebê, somos convocados a elaborar muitos lutos. Quando ocorre o desmame, no nascimento de um irmãozinho e consequente perda do lugar de “filho único”, na volta dos pais ao trabalho, na pré-escola com a percepção de sermos, apesar de nosso valor, “mais um no grupo”, onde é necessário conviver, compartilhar, esperar, conceder, negociar, conciliar, etc. Situações que promovem o desenvolvimento de recursos para o enfrentamento da vida.
Um período bastante conhecido de crise, angústia, confusão, escolhas e luto, é a adolescência, transição da infância perdida para a maturidade ainda não atingida em que o adolescente se pergunta: “Quem sou eu?”.
O processo de crescimento e desenvolvimento não é simples e indolor, envolve continência, tolerância, permeabilidade, transformação e expansão, acompanhados de incertezas, múltiplas possibilidades, ganhos e perdas. Como diz Guimarães Rosa: “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Uma desilusão, uma separação, a morte de alguém querido, a perda do emprego, da liberdade, de habilidades físicas… o processo de luto, conforme destaca Freud, é penoso, sofrido, lento, gradual e necessário, pede delicadeza e vagareza… Envolve tristeza, reclusão e perda de interesse temporária pelo mundo externo, sendo inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele, pois precisa de seu próprio tempo, que é muito particular, para a realização e a aceitação da realidade. O respeito à realidade acontece pouco a pouco e com grande dispêndio de energia e quando o luto é elaborado e concluído, o ego volta a ficar livre outra vez para se abrir para novas ligações e para a vida. E novamente sonhar.
Na melancolia, embora tenha as mesmas causas que o luto, o desamparo e a desesperança vividos envolvem um processo diferente e patológico que pode durar uma vida toda se não cuidado. A melancolia diferencia-se do luto por ser acompanhada de um forte sentimento de desvalor e inferioridade, de uma extrema diminuição da autoestima, de autorrecriminação e autodepreciação, e de uma expectativa delirante de ser culpado e punido. É infrutífero contradizer o melancólico das próprias acusações, sua companhia costuma ser acompanhada de uma “pesada atmosfera”. Em psicanálise costuma-se referir-se à melancolia como um processo onde “a sombra do objeto recai sobre o ego”, retirando toda sua vitalidade. No filme “Melancolia” (2011), aclamado por críticos e foco de controvérsias, Lars Von Trier representa, através da obscura imagem da aproximação e expectativa de colisão do planeta “Melancolia” com o planeta Terra, uma tragédia anunciada: um final apocalíptico quando não é mais possível sonhar.
Na clínica psicanalítica, os sonhos surgem como parte de uma experiência emocional compartilhada que demanda confiança, afrouxamento de defesas, empatia, mutualidade e esperança para que se possa desenvolver recursos e um radar e, assim como os morcegos, sair da caverna e da escuridão e seguir em movimento. Às vezes, nos sentimos mesmo como os morcegos, voando com as mãos, enxergando com os ouvidos e dormindo de cabeça para baixo.
Recentemente, tive a oportunidade de assistir novamente à peça “A Alma Imoral” (2006), adaptação de Clarice Niskier do livro homônimo do rabino Nilton Bonder, convidada por uma pessoa muito querida, que tenho tido o privilégio de ter como interlocutora, amiga e parceira na estrada da vida. Compartilho um trecho da peça ligado à esperança e à possibilidade de seguir sonhando:
“Todo lugar onde o homem cresceu e se desenvolveu, um dia se torna estreito, nenhum lugar pode ser amplo pra sempre. O ventre materno é o primeiro grande exemplo. E saber entregar-se às contrações do lugar estreito, rumo ao lugar amplo, é um processo, é um processo assustador, avassalador… e mágico!
O que fazer quando os portões do passado se fecham e os do futuro não estão abertos? O corpo experimenta a mais temida das sensações, o pânico de se extinguir. O futuro existe se vocês marcharem, é a resposta de Deus. O futuro está ligado ao presente pela alma. Marchem… a alma guiará o caminho seco através do molhado. O mar vermelho não se abre para o povo hebreu passar. O povo marcha e Deus, comovido com a confiança nele depositada, então oferece passagem entre as águas do mar”.
Referências
Couto, Mia. Terra Sonâmbula (1993). Brasil, Companhia de Bolso (2015).
Freud, Sigmund. Luto e melancolia. In: Freud, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 14. Rio de Janeiro, Imago, 1976, 243-263.
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Niskier, Clarice. A Alma Imoral (2006). Rio de Janeiro, adaptação do livro homônimo de Milton Bonder, 1998.
* Luciana Slaviero Pinheiro é psicanalista, Membro Filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
2 replies on “A estrada da vida”
Parabéns pela riqueza do artigo.
Excelente artigo, ótimas referências literárias.