A jovem ciência
Home Blog História da SBPSP A jovem ciênciaEncontro de Durval Marcondes e Freud
Em setembro de 2022, foi apresentado um segundo simpósio como parte da celebração dos 70 anos da SBPSP com o tema “Origens Científicas e Poéticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – Passado, Presente e Futuro”. Em junho de 2022 e em março de 2023, nas atividades propostas pela Diretoria de Cultura e Comunidade, sob a direção do colega João Frayze-Pereira, com os temas “Formação Psicanalítica na SBPSP: Experiência e Memória” e “Psicanálise entre Tradição e Cultura”, respectivamente, foram apresentados trabalhos baseados na rica documentação resguardada pelo Centro de Documentação e Memória (CDM) e Biblioteca da SBPSP. Em março de 2024, foi lançado o livro Acervo Psicanalítico Revisitado com textos dos psicanalistas da SBPSP escritos no passado, cujos temas foram estímulos para os escritos dos psicanalistas contemporâneos.
Estas atividades são exemplos de realização da proposição da atual coordenação do CDM: um acervo vivo referente tanto à parte documental como dos textos científicos que constitui o patrimônio cultural e documental da SBPSP, como estímulos para pesquisas, estudos teóricos e especialmente para novas abordagens psicanalíticas no presente apontando em direção ao futuro.
O texto A Jovem Ciência aqui publicado é uma resenha do que foi apresentado no segundo simpósio de celebração dos setenta anos da SBPSP, publicado na íntegra na Revista Ide vol. 46 nº 77 de junho de 2024 e procura traçar um paralelo entre o surgimento da Psicanálise, a “jovem ciência”, como chamava Freud, e a origem da SBPSP tendo como pano de fundo referência à poética da Psicanálise. Na perspectiva histórica e como marco científico-poético, a aula inaugural de clínica de Neuropsiquiatria ministrada por Franco da Rocha em 1919 na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo pautada na “doutrina de Freud” e assistida pelo jovem calouro Durval Marcondes, é o embrião do que seria a SBPSP.
Em 1924, Durval Marcondes formou-se no curso de Medicina e em 1926 prestou concurso para a cadeira de Literatura no Ginásio do Estado apresentando a tese “O Simbolismo Estético na Literatura: ensaio de uma orientação para a crítica literária baseada nos conhecimentos fornecidos pela Psicanálise” que foi enviada à Freud e respondida por ele no mesmo ano.
Em um manuscrito presente no acervo do Centro de Documentação e Memória da SBPSP, Durval Marcondes expressa a experiência emocional de impacto e surpresa vivida ao receber a resposta de Freud: “… num lugar tão distante da civilização europeia, cheio de índios e serpentes, havia alguém que ousava se interessar pelas nossas jovens ciências, como Freud chamava a Psicanálise”. Este trecho do manuscrito é a ilustração da capa do livro Acervo Psicanalítico Revisitado acima mencionado.
Enquanto Durval Marcondes revelava que o impacto maior foi com o incentivo que a carta de Freud continha, e que tais palavras tiveram o efeito decisivo em sua disposição a se dedicar à Psicanálise, Freud por ocasião do recebimento do Prêmio Goethe, assim se expressava: “O trabalho de toda minha vida pautou-se em um único objetivo: criar uma ciência da alma”.
A proposição de ciência na procura de seu objeto (alma) resulta nas formulações teóricas, conceituais e de sua metapsicologia articuladas com “linguagens artísticas na indissociabilidade entre ciência e arte: uma composição original e específica chamada psicanálise” (Pontalis & Gomes, 2013). Na obra de Freud, diz Pontalis, “um pensamento poético alia-se a um pensamento metapsicológico, com força e poder de ressonância de uma ideia que cai na atividade da língua e da escrita”.
Hoje, com as conquistas das novas proposições psicanalíticas em suas expansões, pode-se considerar a metapsicologia como realização da composição científica e poética, “aliada ao método psicanalítico como objeto estético, como Meltzer agregou” (Meg Harris Willians, 2008). Segundo esta autora, em sua conferência em 2008, “há três sentidos para a afirmação de que a psicanálise tem uma dimensão estética: o modelo psicanalítico da mente, a natureza do encontro psicanalítico como um processo estético e a própria evolução da psicanálise como uma arte-ciência”. Assim como torna-se considerável também a incalculável contribuição de Freud com a introdução da estética em suas obras, mais que a sua contribuição à estética conforme assinalado por Hanna Segal em sua obra Sonho, Fantasia e Arte, 1993.
A ênfase na dimensão poética-estética que tem sido destaque na produção cientifica e metodológica no presente revela o próprio desenvolvimento da psicanálise e, ao mesmo tempo, um aprofundamento das proposições já presentes no surgimento da “jovem ciência”: a conjunção da dimensão científica e da arte na busca do acesso ao seu objeto, isto é, as manifestações da alma, à mente, ao não sensorial.
Do encontro de Durval Marcondes e Freud, nos idos de 1924, ao reconhecimento da IPA como Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 1951, decorreram 27 anos. Em 2021, foram celebrados seus setenta anos. Historicamente situada em suas origens, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo constitui-se como guardiã da psicanálise na preservação de sua identidade científica e metodológica, assim como de seu contínuo desenvolvimento. A própria história da SBPSP nos permite acompanhar esse desenvolvimento, que se deu mediante o acesso às teorias freudianas, formalizado na chegada da nossa primeira psicanalista, Adelheid Koch, em 1937, para formação dos primeiros psicanalistas brasileiros. Posteriormente, houve a introdução do estudo de novas teorias psicanalíticas, por exemplo, com a ida de Adelheid Koch (1948) e Virginia Bicudo (1950) à Londres, quando estas tiveram contato com as teorias kleineanas, dentre outras e, em 1951, Ligia Amaral, outra de nossas pioneiras, quando participa, também em Londres, de cursos ministrados por Ana Freud, Melanie Klein, Paula Heimann, Winnicott e supervisões com Hanna Segal.
O dinamismo manifesto pela SBPSP no decorrer do tempo promoveu o intercâmbio com outras Sociedades e a vinda de vários psicanalistas estrangeiros, resultando em colaborações científicas mútuas: em 1973, a vinda de Betty Joseph; em 1989 e 1998, Donald Meltzer; em 1992, Hanna Segal; em 1973, 1974 e 1978, de Wilfred Bion, em 1998 e 2000, de Antonino Ferro; em 2008 e 2021, de Meg Harris Willians, dentre outros.
Há muito mais para contar e a descobrir pesquisando o acervo do Centro de Documentação e Memória da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Estas pesquisas poderão vir a ser estímulos para muitas contribuições do nosso corpo societário à história e identidade da própria Sociedade, assim como à Psicanálise. Em tempo de celebração e homenagem aos nossos pioneiros, os votos são de que o futuro seja promissor, levando adiante o que foi construído no passado e continua sendo no presente, de forma que a “ênfase à estética no processo psicanalítico venha a ser definida com mais precisão e vivacidade” como esperava Meltzer, fortalecendo a proposição da psicanálise como ciência-arte.
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Prof. Dr. Freud
Viena IX, Berggasse 19
18.XI.1926
Mui prezado Sr.,
Infelizmente não entendo sua língua, mas graças aos meus conhecimentos de espanhol pude apreender de sua carta e de seu livro que é sua intenção aplicar os conhecimentos advindos da psicanálise a obras da bela literatura e assim, de uma forma geral, despertar nos seus conterrâneos o interesse pela nossa jovem ciência. Agradeço cordialmente seus esforços neste sentido e espero que o Sr. seja bem-sucedido. Posso assegurar-lhe ainda que, se o Sr. continuar se ocupando com este objeto de estudo, certamente isto será algo recompensador e rico em novos esclarecimentos.
Respeitosamente,
Freud
*tradução: Elsa Vera Kunze Post Susemihl
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Referências:
Montagna, P. (1994) Álbum de Família, imagens, fontes e ideias da psicanálise em São Paulo. Casa do Psicólogo
Segal, H. (1993) Sonho, Fantasia e Arte. Imago
Willians, M. H. (2008). O Desenvolvimento Estético: Bion e Meltzer e o Espírito Poético da Psicanálise (Conferência). Encontro Internacional O Pensamento Vivo de Donald Meltzer, São Paulo.
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Yone Vitorello Castelo é socióloga, mestre em Ciências Sociais, psicóloga e psicanalista membro associado da SBPSP. Co-coordenadora do Centro de Documentação e Memória da SBPSP.
Imagem: Carta de Sigmund Freud para Durval Marcondes, em alemão. Fonte: Centro de Documentação e Memória da SBPSP. www.sbpsp.org.br/documentacao/centro-de-documentacao/#centro-de-documentacao
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