A psicanálise e o caso José Mayer
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Uma visão psicanalítica sobre o caso José Mayer
*Por Susana Muszkat
Vimos surgir nas últimas semanas, na esteira do #AgoraEQueSaoElas, mais uma manifestação de indignação e repúdio por parte de um grupo de mulheres: #MexeuComUmaMexeuComTodas.
Este hashtag visa denunciar mais uma de um sem-número de situações de desigualdade nas relações de gênero, manifesta por atos que traduzem o desejo de manutenção de uma determinada ordem nas relações de poder. Neste caso vemos como, uma somatória de pressupostos paradigmáticos, levou um ator-celebridade a se sentir autorizado a assediar, no espaço de trabalho, uma moça bonita e jovem, sua subordinada.
O que são esses pressupostos paradigmáticos a que me refiro? São ideias que circulam entre nós, tendo o estatuto de ‘normalidade’. Sendo assim, costumam ser aceitas como fazendo parte da ordem natural das coisas, ainda que não nos agradem.
Por exemplo:
- O predomínio em nossa cultura da ideia de que homens têm, por direito, deliberar sobre o destino das mulheres. Em outras palavras, subjaz um pressuposto de que aos homens cabe ocuparem lugares de decisão e de comando.
Vide, por exemplo, homens que matam companheiras pelo simples motivo de elas não mais os quererem como companheiros. O inverso é muito raramente o caso.
Ou ainda, a proibição imposta às mulheres de terem liberdade de decidir sobre a própria vida e corpo no que diz respeito ao aborto. A hierarquização entre homens e mulheres baseada no gênero visa garantir a perpetuação de Relações de Poder que são confundidas como normais ou a norma. Evidencia, ainda, como esse tipo de hierarquização é posta a serviço do preconceito e da discriminação.
- Além da questão de gênero, vemos aqui uma outra ordem de abuso de lugares hierárquicos uma vez que se trata de um patrão famoso e poderoso e uma funcionária jovem cujo trabalho está subordinado ao dele. Confunde-se aí subordinação trabalhista com subjugação do outro.
Mas por que um homem educado, famoso, poderoso, que parece ter tudo, praticaria um tipo de violência contra alguém em posição de menor força?
Pois é, parece ter tudo… No entanto…
Freud, nos esclarece a respeito da condição básica de desamparo em que nós, seres humanos, nascemos. Necessitamos, desde o primeiro momento de nossa existência, de um outro adulto que nos deseje e se dedique a cuidar de nós amorosamente para que possamos sobreviver. O problema é que o temor em não sermos plenos e o desejo de nos livrarmos de nossa incompletude humana não termina na infância, mas ao contrário, continua pela vida toda!
Então, de que forma essas duas situações se interligam?
– De um lado temos a cultura que autoriza ou ensina aos homens (e às mulheres também!) que eles têm direitos sobre o desejo das mulheres, fazendo-os pensar que seu desejo é soberano.
– De outro, o temor do desamparo, de sentir-se frágil, não ter tudo.
A ilusão, portanto, de muitos homens, é a de que, por serem homens estarão autorizados a que seu desejo prevaleça sobre o das mulheres. É o desamparo disfarçado de força. É a ilusão respaldada pela cultura de machismo hegemônico, fazendo com que homens acreditem que de fato são mais poderosos. O risco é sempre a confusão da ilusão com a realidade. Pois a realidade revelada expõe a falácia da ilusão, trazendo à tona a reação violenta. A violência contra a mulher que frustra visa encontrar um culpado a fim de poder tolerar que o que parecia realidade era mera ilusão: ninguém pode tudo. Todos somos frágeis. Todos estamos sujeitos ao desamparo.
Mentalidades têm mudado, vêm mudando, e mulheres vêm se mobilizando mais e mais, inclusive, é importante que se diga, com apoio de muitos homens. Essas mudanças buscam estabelecer relações mais equitativas, respeitosas, onde o gênero não seja mais o fator determinante dos lugares que cada um de nós ocupa.
Como última nota: a cultura muda, mas sempre de forma muito lenta. No entanto, a internet e as redes sociais aceleraram construção de redes de apoio e de divulgação jamais imaginadas ou possíveis. Essa velocidade que reúne tantas pessoas em torno de algo em tão pouco tempo, vem criando efeitos marcantes no fiel da balança, alternado as relações de poder. É a isso que assistimos quando algo é ‘viralizado’, e milhares ou milhões de pessoas passam a reproduzir e divulgar uma mesma ideia num tempo comprimido. Isso definitivamente tem repercussões nos ritmos de mudanças de mentalidades e consequentemente da cultura. A Internet e as redes sociais parecem ser o novo poder prevalente. É, sem dúvida, um recurso novo e poderoso.
Deve, contudo, ser usado com cautela, pois vírus podem salvar-nos de doenças através de vacinas ou podem eliminar povos ou contagiá-los de forma irreversível.
*Susana Muszkat é psicanalista, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). É psicanalista em consultório particular de adolescentes, adultos, casais e famílias. É mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, e autora do livro Violência e Masculinidade(2011) ed. Casa do Psicólogo e Violência Familiar (co-autora), (2016) ed. Blucher, que faz parte da coleção O que fazer?, da qual é uma das coordenadoras editoriais.
3 replies on “A psicanálise e o caso José Mayer”
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