A questão indígena: os Yanomami pelo olhar de Claudia Andujar
Home Blog pandemia A questão indígena: os Yanomami pelo olhar de Claudia AndujarCom a pandemia de COVID-19, o fotógrafo Sebastião Salgado e sua esposa Lelia lançaram uma campanha internacional, cobrando ações imediatas do governo federal para os povos indígenas brasileiros, ameaçados de genocídio pelo vírus e pelas sucessivas queimadas.
Em resposta, a FUNAI devolveu ao artista 15 obras suas realizadas junto ao povo Korubo, e acrescentou a sugestão de que ele as vendesse e utilizasse o valor arrecadado para beneficiar as comunidades.
Tanto a denúncia quanto o descaso não são novos. O trânsito entre brancos e populações nativas no Brasil é violento e cruel desde a chegada dos colonizadores.
Décadas antes do apelo de Salgado, em 1971, Claudia Andujar, fotógrafa suíça naturalizada brasileira, foi testemunha da devastação gerada por este contato. Claudia, que recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, viveu junto ao povo Yanomami, a sétima maior etnia indígena brasileira, até ser expulsa e enquadrada pela Lei de Segurança Nacional em 1976. A acusação: produzir e divulgar material anti-governamental.
Isso a levou a liderar o projeto de criação do Parque Yanomami em Roraima, que resultou na demarcação das terras em 1992, no país já redemocratizado.
Nas séries fotográficas deste período, Claudia faz uso de variadas técnicas, como vaselina na lente, superposições e transparências, para criar imagens de forte carga emocional (Andujar apud Persichetti, 2008).
Em franca intencionalidade artística, seu interesse não estava em representar a floresta e os índios, mas em apresentar a dimensão espiritual da cultura Yanomami.
A situação dos povos indígenas foi se tornando cada vez mais grave. A descoberta de minérios levou uma empresa a se apropriar de parte de seu território. E as sucessivas invasões de garimpeiros provocaram epidemias que praticamente dizimaram a população nativa. Assim, em 1981, com o início da abertura democrática, Claudia voltou à Amazonia junto a médicos, para detectar doenças, realizar vacinações, registrar e identificar os habitantes (Andujar, 2009).
No entanto, não poderia haver um reconhecimento de cada um por nome próprio, pois para os Yanomami esta atribuição se faz a partir de feitos, podendo uma mesma pessoa receber diferentes nominações em vários momentos da vida. Então eles foram identificados por placas numeradas penduradas no pescoço; como os retratos de Alphonse Bertillon, que no século XIX criou um sistema de identificação de criminosos a partir das medidas de seus corpos – e que permanece nos atuais sistemas de identificação (e de dessubjetivação), quando o detido é fotografado de frente e de perfil.
Mas estas imagens vão além da aparência e da intenção de catalogação: elas se equilibram na fronteira da etnografia, da política e da arte. Porque Claudia apresenta algo que ultrapassa o registro do real. Algo que pode nos desconcertar. O que vemos nestas imagens, se as olharmos bem?
Vemos indígenas aceitando em seus corpos números impostos pelos brancos, números que provavelmente não conhecem.
Vemos rostos em série; uma repetição que nos faz ver em cada olhar o traumático do contato com os brancos.
Vemos as tensões no jogo fronteiriço do sentido das palavras marcado/demarcado, uma vez que os índios são marcados para terem suas terras demarcadas – e protegidas do assédio explorador. Mas por outro lado, a própria demarcação territorial é uma categoria imposta que fere a cultura Yanomami, baseada em contínuos deslocamentos e no uso móvel da terra (Senra, 2009).
Nas imagens de pessoas marcadas, uma sobreposição temporal: o genocídio dos povos indígenas e o trauma das estrelas amarelas costuradas no peito e das tatuagens nos campos de concentração nazistas, onde Cláudia Andujar perdeu toda a família paterna (Persichetti, 2008).
Portanto, ao olhar para estes rostos, vemos algo de infamiliar [1] (Freud, 1919/2019). Estamos diante do reconhecível que provoca um choque e intensifica a angústia. Algo que escapa à operação do recalque – é a violência da morte que aparece e nos olha.
E se, do ponto de vista individual, o recalque nos convence da nossa imortalidade, do ponto de vista político-social há algo que não pode ser visto e que se avizinha à noção de necropolítica, onde alguns são escolhidos para morrer porque suas vidas valem menos (Mbembe, 2011). Uma desmentida, um apagamento coletivo daquilo que deveria ser percebido, uma alucinação o negativa segundo Green (1995) [2]. O silêncio sobre o massacre de povos indígenas, condena o sintoma social da violência contra partes da população brasileira à repetição.
Mas, se a prática social de crimes silenciados permite o manejo perverso da realidade e autoriza o cínico tratamento que o governo brasileiro deu ao manifesto de Sebastião Salgado, pela arte o silêncio conquista voz.
No limite da invisibilidade, os Yanomami tornam-se visíveis pelo olhar de Claudia Andujar, para viver. Mas o ato de fotografá-los ultrapassa a sua intenção originária. As imagens, feitas para registros de identificação, só foram olhadas como artísticas por Claudia anos depois, quando denominou a série de Marcados e em 2005 decidiu apresentá-las em Londres, na exposição “Marcados para viver, marcados para morrer”.
As imagens dos Yanomami marcados revela o que se determina a evitar: a vulnerabilidade que coloca as populações indígenas na linha fronteiriça com a morte. Pela fotografia, aquilo que sofreu o apagamento do imaginário social ganha forma visível. Uma forma que segue marcada na memória de quem a olha; nós também somos marcados pelas imagens que vemos.
Referências
Andujar, Claudia. (1998). Yanomami. São Paulo: DBA.
______. (2009). Marcados. São Paulo: Cosac Naify.
Freud. S. (1919/2019). “O infamiliar”. In Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica.
Green, A. (1995). El trabajo de lo negativo. Buenos Aires: Amorrortu.
Mbembe, Achile. (2011). Necropolitica. Espanha: Editorial Melusina.
Persichetti, Simonetta (2008). Claudia Andujar. São Paulo: editora Lazuli.
Senra, Stella. (2009). “O último círculo”. In Andujar, Claudia. (2009). Marcados. São Paulo: Cosac Naify.
Silvana Rea é Membro efetivo e Diretora Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Graduada em Cinema e Psicologia, Mestre e Doutora em Psicologia da Arte pelo IP-USP, autora dos livros Transformatividade: aproximações entre psicanálise e artes plásticas e Pelos poros do mundo.
[1] O termo infamiliar é um neologismo criado pelos tradutores Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares para unheimliche. Em Obras Incompletas de Sigmund Freud.
[2] A alucinação negativa é a recusa da percepção de um objeto ou de um fenômeno psíquico perceptível, uma negação de percepção externa ou de uma representação inconsciente indesejável.