A singularidade da formação psicanalítica: transformações do Conhecer ao Ser
Home Blog Formação em Psicanálise A singularidade da formação psicanalítica: transformações do Conhecer ao Ser“Conhecer as manhas e as manhãs. O sabor das massas e das maçãs. É preciso amor para poder pulsar. É preciso paz para poder sorrir. É preciso a chuva para florir” (Tocando em frente – Almir Sater e Renato Teixeira)
Ao receber o convite para escrever sobre a formação psicanalítica lembrei de três experiências. Duas delas anteriores a minha formação na SBPSP. A primeira foi quando nos estudos de filosofia, li o livro “O mestre e o discípulo” (1994), de Jean Brun, em que o autor destaca que a essência não é a aprendizagem informativa e sim a vivência de uma estranha inquietude que provoca transformações em ambos. Ele diz “não há mestre sem discípulo e nem discípulo sem mestre”. A segunda experiência foi em um curso com o psicanalista Persio O. Nogueira ao recomendar o livro “A arte cavalheiresca do arqueiro zen” (1990), de Eugen Herrigel. O autor apresenta a perplexidade de um jovem diante da habilidade do mestre dos arcos, em acertar o alvo de olhos fechados, indaga como ele poderia aprender. Uma narrativa na dimensão metafórica levando-nos a refletir sobre a vida, sobre a peregrinação áspera e longa, de uma viagem em busca da luminosidade interior. A terceira foi a leitura recente do artigo de Ogden (2020), “O que eu quero ser quando crescer?”
Acredito que todas essas experiências se relacionam mutuamente para pensar sobre a formação psicanalítica, sobre o SER analista, o quanto o caminho do “meio” é capaz de nos ajudar a transpor os sofrimentos que marcam a banalidade do cotidiano.
A palavra formação remete ao verbo formar que indica dar ou tomar forma, estruturar-se, conceber ou ser concebido, criar-se. Adquirir conhecimentos, habilidades e competências. Elaborar algo progressivamente.
E a psicanálise pode ser ensinada nas universidades? Freud, em 1919, responde em seu artigo que a psicanálise tem muito a contribuir com a universidade, no entanto a formação do analista deve acontecer nos Institutos das Sociedades de Psicanálise. Propõe um tripé na formação: análise pessoal, seminários teóricos-clínicos e supervisão. Deixa registrado o rigor que a instituição que oferece formação deve ter com a análise pessoal, com a preservação da privacidade, com a inviolabilidade da análise e do par analítico. Diz que psicanálise se aprende é no divã. Descreve a sua complexidade, a presença estranha de certos afetos de movimentos regressivos, das vivências de transferência negativa, do ataque aos vínculos, do trabalho de desidealizações, de desconstrução de diversas transferências. A formação é também transmissão de um saber teórico-clínico, no entanto é muito mais, é a singularidade da experiência da análise pessoal que transmite o inconsciente em nós.
Freud também se preocupou em evitar a psicanálise silvestre, criou a Associação Internacional de Psicanálise (IPA), em 1910, para regulamentar a profissão. Hoje nos deparamos com movimentos institucionais alinhados com uma sociedade que ataca o saber e a cultura, propondo formação em psicanálise na graduação.
A ciência progride pelos avanços do método e da técnica. Freud, médico neurologista, interessado na dor psíquica apresentada em sua clínica, indaga que corpo é esse que dói, qual a natureza desta dor. Ele se reinventa, dá um salto da medicina para a psicanálise, organiza uma nova ciência comprometida com o sofrimento da alma e que “perturba o sono da humanidade”. A clínica investigada por ele forneceu a sustentação para diferenciar psicanálise da filosofia, da psicologia, da medicina, criou uma metapsicologia. Com seus atributos de pesquisador, de escritor criativo, dedicado, Freud publica suas descobertas, organiza a transmissão, revoluciona a metodologia terapêutica da época: sedação, choque elétrico para uma escuta atenta e diferenciada, a do inconsciente que habita nosso interior. Sensível a dor mental manifestada na resistência devido a transferência, funda a psicanálise no final do século XIX, cria um método e uma técnica de investigação conjunta entre paciente e analista. A liberdade do analista e do analisando é amparada pelo método criado por ele, desde 1895, método este de observação e aproximação ao psiquismo que implica em um duplo, aquele que investiga é também investigado. O modelo da análise é o do sonho. O sonho é a via régia ao inconsciente. Ele e o sintoma tem semelhanças, são retorno do conteúdo inconsciente recalcado. Em 1912, Freud convida o analista a escutar e não anotar. Escutar um estado de Ser, uma maneira de estar com o paciente, muitas vezes em uma comunicação não verbal, em silêncio, semelhante a música. A análise é um empreendimento terapêutico com o objetivo de aumentar a capacidade do paciente de estar vivo para vivenciar a experiência humana, ser capaz de sonhar e de existir. A metodologia analítica pressupõe um diferencial entre a maturidade emocional do analista e do analisando. O analista cria e mantém o setting analítico. A análise envolve o uso do divã, um número de sessões regulares de duração fixa, ênfase na expressão emocional na forma de palavras associadas livremente, estruturadas ou não, sem ação. A situação analítica é a concepção da metodologia analítica, a concepção individual do analista da teoria e dos princípios técnicos que ele desenvolveu ao longo de sua experiência como analisando e como analista praticante. No relacionamento psicanalítico entre analista e analisando surgem as ansiedades, as defesas, a transferência e contratransferência, as identificações projetivas.
A formação psicanalítica em sua gênese, é um processo de inventar a si mesmo, durante um caminho. Uma experiência emocional vivida, que apresenta uma lógica implicada no Ser, que vai muito além de uma lógica explicada, transcrita, que tem a dimensão ética do respeito e responsabilidade com o outro e consigo próprio, que promove o pensamento crítico de si , da vida coletiva e da cultura. É neste lugar que me coloco, acreditando que psicanálise é vida, é movimento, e assim penso ser possível dizer algo sobre a minha experiência vivida que possa ser útil para pensar o que é a formação. Observo que cada momento da minha construção de analista há raízes profundas que me alimentam, sustentam o meu percurso, mesmo antes de fazer o curso de psicologia. Uma história transgeracional de avós e pais vocacionados para acolher a dor alheia e tecer continência psíquica. Em Totem e tabu (1913), Freud cita Goetthe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-os para fazê-lo teu”.
Como graduanda no curso de psicologia tive a oportunidade de desenvolver atividades com o psicanalista Dr. Adroaldo Modesto Gil, professor do curso de Medicina da Universidade Federal. Ele nos convidava a conversar com os pacientes e familiares que procuravam os ambulatórios clínicos e com aqueles internados no hospital psiquiátrico. Adroaldo também trazia colegas da SBPSP para dar cursos e palestras, uma semeadura de interdisciplinariedade, de como trabalhar em equipe na busca da integração. Nesse meio, meu entusiasmo pela psicanálise só cresceu e anos depois iniciei minha análise pessoal, pedra angular e eixo central da formação psicanalítica. Fui convidada para ser docente no curso de psicologia nas disciplinas teóricas e práticas de estágios e logo depois a assumir a direção do curso. Intuitivamente fui introduzindo a psicanálise nos programas e atividades, implantando um hospital dia com modelo psicoterápico psicanalítico, no espaço da clínica de psicologia e promovendo eventos com analistas convidados da SBPSP. Um período criativo e transformador, uma “florada “ fértil. Ao mesmo tempo atendia no consultório. Semanalmente ia a Ribeirão Preto fazer análise, supervisões, grupo de estudos, sendo um deles muito singular, o de observação de bebês. A travessia era de mão dupla, universidade, consultório conjugados com a família. Junto com colegas fundamos um grupo para cuidar da psicanálise em Uberaba. A riqueza do trabalho expandiu para as cidades vizinhas como Uberlândia, Frutal, Ituiutaba e região.
Na verdade, a formação oferece condições para que determinadas funções da personalidade possam se expressar e desenvolver no campo analítico, institucional e social. Lembro de ouvir de um dos meus analistas que o principal instrumento de trabalho do analista é sua personalidade. O psicanalista na busca da sua identidade precisa estar preparado para suportar o mistério, a dor e poder pensá-la. O método se apresenta como continente para a turbulência da dupla analítica. A instituição que propõe a formação é a soma de todos nós. Oferece o caminho da espontaneidade e da criatividade na formação. Como os cajueiros do Nordeste, com suas raízes profundas extraem do solo árido a seiva da vida, e produzem cajus saborosos, reconheço o valor que tem uma análise, como ela possibilita construir tecidos, pele psíquica, como pode transformar, extrair, fertilizar, ressoar dentro de mim como as “batidas do coração”.
Sou grata as minhas três experiências de análise, cada uma no seu tempo, ritmo, sonoridade, melodia e harmonia. A primeira foi em Ribeirão Preto, 1982, aos 27 anos, já casada e com meus filhos com 5 e 3 anos, iniciei análise concentrada com a Drª Suad Hadad, sem pretensões de ser analista e fui até 1990. A segunda depois de um intervalo, também em Ribeirão, de 1994 a 1996, com o Dr. José Américo Junqueira de Mattos, com 4 sessões por semana, pois era assim que trabalhava. A terceira, em 1997, na formação oficial em São Paulo, análise didática com Maria Cecília Andreucci Pereira. Quero acrescentar as duas experiências de supervisão que tive na formação. A primeira em 1998, com Judith Andreucci, com mais de 80 anos me oferecendo seu conhecimento e experiência psicanalítica, entremeados de poesia declamadas por ela. Uma “degustação” refinada. A segunda com Antônio Sapienza, um “pensador criativo” que me convidava a desenvolver treino a intuição. Após uma ano em São Paulo iniciei meu mestrado na PUC/SP pois tinha voltado a universidade. Lembro que durante minha formação na SBPSP, fiquei sabendo do movimento de abertura da sociedade para a comunidade /universidade. Foi criado o terceiro setor. Como eu estava nas duas instituições me apresentei ao presidente da SBPSP para criamos um curso de especialização em Teoria psicanalítica. Assim aconteceu. O apoio e disponibilidade da gestão da SBPSP, na época de Luiz Junqueira filho e Marcio Giovanetti somado à dos analistas, viabilizou planejar, executar esse curso em 2000. Graças a sua qualidade ele se mantem até os dias de hoje, preenchendo um espaço intermediário entre a graduação e a formação oficial. Muitos dos alunos que fizeram esse curso foram para a formação psicanalítica.
Acredito que mesmo que muitos candidatos procurem a formação já portadores de outras formações, não desqualificando suas experiências anteriores, busca-se o que não se sabe sobre si mesmo. A singularidade da formação psicanalítica se faz presente. Conviver com o incerto, tolerar mistérios, dúvidas, medos e paixões são inspiradores para encontrar luz em sombras. A escuta psicanalítica das manifestações sociais além das do inconsciente recalcado, o trânsito do passado ao presente, o reconhecimento dos que me procederam, me enriqueceram e fortaleceram minha identidade psicanalítica. Segui trabalhando e, em 2020, junto com mais nove colegas, fundamos o GPU (Grupo de Psicanálise de Uberaba), hoje grupo IPA.
A psicanálise é um conjunto de teorias analíticas, de princípios técnicos que foram se desenvolvendo desde o final do século dezenove e que convida o analista a reinventá-la para cada paciente e a cada nova sessão. Penso que ela também pode contribuir em discutir o mal-estar na cultura de nosso tempo. A psicanálise é uma obra aberta em que a articulação clínico-teórica, permite novas reconfigurações como ao trabalhar com pacientes que não são disponíveis para sonhar as emoções, que trazem questões mais primitivas. A sociedade contemporânea apresenta uma inundação de excitação, estamos expostos ao assassinato do tempo, os traumas que hoje se apresentam dos ideais que a própria realidade não permite cumprir, esmagam o psiquismo, não há perguntas sobre o desejo, nem espaço para a fantasia, o ego está reduzido na sua capacidade de amar. Diante desta situação, diferente de outros tempos em que o paciente trazia seu desejo representado, hoje, o analista é convocado a abrir caminho para o mundo representacional por meio da relação vincular, a criar um “tecido psíquico”, a estimular vínculos, a escutar o mundo libidinal adormecido. A psicanálise sempre resgatou o valor das possibilidades humanas de transformação, com a lógica da esperança.
Nesta direção, Bion nos convida a transferir o enfoque da compreensão dos sonhos para a experiência do sonhar. O analista engajado na experiência de estar com o paciente cultivando uma vigilante evitação de memória, de desejo de cura e compreensão, favorece a emergência da intuição. O tornar-se analista requer desenvolver um “estilo analítico” próprio. Surge então uma reflexão: Quais são os valores que estão no eixo central da prática psicanalítica?
Ogden responde em seu livro A arte de psicanálise, “do que eu não abriria mão”. Descreve seis elementos essenciais ao setting analítico.
O paciente é um ser humano e deve ser tratado com dignidade e respeito, o que não significa diminuir o sofrimento com atitudes de reasseguramento.
No setting analítico é preciso encarar a música, sustentar a tensão entre a necessidade de segurança e a verdade, face as emoções perturbadoras.
Ser responsável com o bem-estar do paciente, o que difere de executar um conjunto de regras. Considerar que o analista também está engajado num contexto social/político. Ser receptivo e responsivo.
Pensar em voz alta significa adequar a linguagem a si próprio e a outrem do que está sentindo e pensando.
Desenvolver o não saber. O analista sustentar o não saber. A capacidade de imaginar não é descobrir soluções e sim mudar os termos do dilema enfrentado.
Sonhar-se sendo. O crescimento psicológico do paciente envolve expansão de sua capacidade de experimentar o espectro da capacidade de estar vivo, de receber e dar amor, de sonhar a experiência emocional vivida.
A psicanálise nos enriquece interiormente. Cada iniciativa é mensageira para outra, com uma invariante: a reciprocidade, a busca do encontro, do diálogo e do amor à Psicanálise.
Bibliografia
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________ (1963) Aprender com a experiência. Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1966
________ (1965) Transformações. Rio de Janeiro: Imago, 2004
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Teixeira, R. Sater, A. (1990). Tocando em Frente. Philips.
Lídia Queiroz Silva Magnino é membro efetivo da SBPSP. Fundadora do GPU (Grupo de psicanálise de Uberaba/IPA) mestre em Psicologia Clínica – PUC-SP. Docente do curso de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e do curso de Medicina da UNIUBE.
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One reply on “A singularidade da formação psicanalítica: transformações do Conhecer ao Ser”
Adorei seu texto. Sou psicóloga e Psicanalista a muitos anos ( desde 1970)e é difícil encontrar textos tão claros e objetivos como o seu, abertos a população que busca algo de psicanálise na internet.