A tecnologia não pode substituir o contato humano no tratamento do autismo
Home Blog entrevistas A tecnologia não pode substituir o contato humano no tratamento do autismoA psicanalista Alicia Beatriz Dorado de Lisondo integra o Grupo de Psicanálise e Pesquisa de Autismo (GPPA). Junto com outros profissionais, ela tem se dedicado a estudos na área que culminaram na publicação do livro “Atendimento Psicanalítico do Autismo” (2014) e no desenvolvimento do Protocolo PRISMA (Protocolo de Investigação Psicanalítica de Sinais de Mudança em Autismo), que oferece indicadores para o mapeamento do desenvolvimento emocional de crianças com transtornos autísticos e sua evolução no tratamento psicanalítico.
“Queríamos dialogar com a comunidade científica, mostrando como a psicanálise é um caminho eficiente para trabalhar com a criança com estados autísticos. Então criamos o Protocolo PRISMA, que foi apresentado em vários congressos internacionais”, conta Alicia. Em entrevista à Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo, ela fala sobre o autismo em um mundo cheio de estímulos tecnológicos e deixa um alerta: a tecnologia não pode ser usada para substituir o contato humano.
Os estímulos proporcionados pela tecnologia podem ser usados a favor do tratamento de um paciente autista?
Sem dúvida estamos em mundo midiático. Isso é uma realidade. A questão é: como a tecnologia é usada? Isso não é só para a criança autista, é para qualquer criança. Quando a família está submetida à televisão ou ao tablet, não está dialogando nem interagindo. Há momentos que deveriam ser sagrados. Hoje, a conversa e até a briga e o confronto estão sendo substituídos por cada um com seu tablet ou com seu celular quando a família se reúne em torno de uma mesa. O problema é que o aparelho não é um ser humano. Pode estar a serviço desse refúgio autístico, desse isolamento para evitar o contato. O aparelho pode fazer parte desse mundo mental da criança com estados autísticos. Não são só os psicanalistas: a Sociedade Brasileira de Pediatria também encaminhou um comunicado chamando a atenção para o uso excessivo dessas tecnologias que estão levando crianças a quadro de depressão, de anorexia, adições e até o suicidio.
Há limites e contraindicações para o uso desses estímulos tecnológicos?
Os psicanalistas, pela experiência clínica, tentamos alertar sobre as consequências do uso excessivo dos estímulos tecnológicos. Quanto menos melhor na primeira infância. Seu uso precisa ser modulado de acordo com as idades e os estados mentais. Há um tempo fiz uma avaliação diagnóstica em que o menininho com fortes traços autísticos estava com o tablet. Ele passava o dedinho e sucessivas figuras que o pai tinha carregado apareciam na tela. Em determinado momento, tentei ver o conteúdo. Me dei conta que era tão grande a minha dor e sofrimento que eu queria encontrar um sentido naquela envoltura imagética. Ele não me olhava, ele não estava em contato comigo e o uso que ele fazia desse tablet era passar o dedinho e ficar absolutamente absorto com a imagem aparecendo . Ele parecia não entender, não reconhecer cada imagem. Importava ter o controle pelas aparições e desaparições . Estava focado nesse tablet que lhe dava uma proteção sensorial e o protegia do contato humano. Esse tablet é previsível, ele tem o controle. O ser humano é imprevisível em sua essência. Ele não estava sendo estimulado com o tablet assim usado, ele encontrava excitação em seu mundo próprio, isolado do mundo humano.
Eu acho que o importante é que os pais entendam que os efeitos dos recursos tecnológicos dependem de como eles estão sendo usados e que isso não os poupa das funções paternais. Com os adolescentes, é importante que os pais estejam perto para acompanhar, não para proibir. A possibilidade de conversar, de dialogar, pode permitir que valores e modelos sejam assimilados. A criança precisa de tempo para brincar e sonhar, o adolescente para ter seus devaneios, a vida nos grupos sociais, organizar os programas sociais presenciais, poder ter devaneios, descansar. Tem criança que tem agenda de executivo.
Acredita que outros profissionais, como fonoaudiólogos e pedagogos, podem se beneficiar desse recurso no tratamento?
Depende do uso que se faz. Se estão sendo usados para substituir a interação humana, eu desaconselho seu uso. O problema da criança autista – e isso é muito importante para conscientizar a comunidade – não é que a criança fale ou deixe de falar. É uma questão do ser, da formação da personalidade, dos alicerces do ser humano. Os papagaios também falam. Não nos interessam essas falas mecânicas e repetitivas, automáticas, que são objetos autísticos assim como o tablet pode vir a ser. Nos interessa uma pessoa que seja autor de sua fala, que tenha construído uma subjetividade. Que sua fala seja uma linguagem, expressão de sua subjetividade, uma linguagem com um sentido num diálogo humano. É preciso ter para quem falar e ter um dizer próprio e singular. Então, o fonoaudiólogo pode ser um profissional que muito ajude no momento adequado, dependendo da concepção que tenha do ser humano e da aquisição da linguagem. Mas o paciente com estados autistas está lutando para construir um sentido para sua existência. Às vezes, o próprio sentido de existir como ser humano. Ele não é só um aparelho fonoarticulatório. A criança pode se sentir invadida com espátulas e tentativas de recuperar o tônus muscular em momentos de muita angustia catastrófica, desmantelamento psíquico, se sentir caindo aos pedaços.
Essas questões envolvendo tecnologias são mais comuns nos pacientes nativos digitais ou você percebe em outras idades também?
A tecnologia pode ser utilizada em todas as idades e os pais são um modelo de identificação. O mundo de hoje é muito desumano. Em uma cidade como São Paulo, não há muitos espaços seguros, arborizados, para a criança brincar, explorar o mundo, subir em arvores. A vida contemporânea dos casais faz com que as crianças sejam colocadas em creches, após a licença maternidade durante muitas horas por dia. O primeiro ano de vida é fundamental para criar vida psíquica, alicerce da personalidade. Quando a mãe dá o seio ao filho, ela dá muito mais do que leite. A criança olha a mãe suficientemente boa, se encontra espelhada no seu rosto, escuta sua voz, saboreia o leite, sente-se segura no seu colo com um holding firme. Os sentidos estão integrados, harmonizados numa sinfonia poética: audição, vista, olfativo, gustativo, Kinestecico, cinestecico. A mãe é um seio pensante e um seio estético que lhe mostra o mistério do mundo. Em muitas situações, por falta de tempo, esgotamento, falta de conhecimento, conflitos na relação afetiva, uma difícil história transgeracional e um conjunto de fatores conhecidos e desconhecidos, muitas vezes o tablet surg como recurso autocalmante, um alívio para a família em desespero. É claro que a criança pode vir a ficar calma em seu mundo próprio- a paz do sepulcro-, mas aí a criança não lida com a raiva, com a frustração, com os limites, com a malcriação, não aprende a esperar, a tolerar, a criar outras alternativas, não chega o seio, pode chupar o paninho. As emoções, nos vínculos humano nutrem a mente. Joao a mamãe já chega aí, aguarda um pouquinho…Vai dar muito mais trabalho fazer uma criança de dois anos recolher os brinquedos e colocar em uma caixa do que fazer por ele Quando ele vive a experiência de juntar, guardar numa caixa, os brinquedos, ele encontra um continente. Ele pode juntar e esparramar e aí está a reversibilidade. O que acontece no seu mundo pode vir a ter um correlato com funções mentais. Essa criança de 18 meses precisa brincar com potes, encher potes e esvaziar potes, assim aprenderá a controlar esfíncteres; uma bexiga cheia é esvaziada. Ele perde urina, não seu ser que desaparece nessa urina. Essa possibilidade de brincar vai alimentar a vida mental. A criança precisa desenhar, contar e escutar histórias, brincar, criar personagens, dramatizar, explorar o mundo, interrogar, armar quebra-cabeças, dialogar, modelar… viver em vínculos humanos significativos.
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo é analista de crianças, adolescentes e adutos. Didata e docente do GEP Campinas e da SBPSP. Filiada à International Psychoanalytic Association. E-mail: alicia.beatriz.lisondo@gmail.com