Analistas em tempos de fim dos tempos
Home Blog clínica psicanalítica Analistas em tempos de fim dos temposNão faz muito tempo, circulou um artigo sobre jovens casais que substituíam filhos por pets: “Esse movimento, conhecido como pet parenting ou parentalidade de animais de estimação, reflete uma mudança nos padrões de vida e nas prioridades das pessoas”, dizia o texto de Júlia Valery no site da Rádio USP. Podemos pensar na composição dessa realidade com os jovens casais que estão temerosos de se tornarem pais? Será que é menos assustador para esses casais tutelarem um animal de estimação do que assumir a responsabilidade por um filho?
Jovens adultos relutam em ter filhos, convictos de que o planeta não será habitável, pois, afinal, “atingimos o ponto de não retorno”. As angústias antes difusas, como a do colapso ambiental e a do fim do mundo, tornaram-se descrições recorrentes nos consultórios.
Gustavo Mendelsohn Carvalho, da Agência Fiocruz de Notícias, escreveu, no site da Fiocruz, que entre as diversas questões discutidas na 29ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, COP29, realizada de 11 a 22 de novembro em Baku, no Azerbaijão, também foram abordados os impactos da degradação ambiental na saúde mental das populações. Diz ele que “algumas pessoas estariam sendo acometidas por uma profunda sensação de perda, frustração e preocupação quanto ao próprio futuro e das próximas gerações”. Nessa conferência, “esse conjunto de fatores caracteriza um quadro de desconforto mental, cujo alcance social se amplia cada vez mais. Foi descrito primeiramente, em 2017, pela Associação de Psicologia Americana, desde então designado como ecoansiedade e, mais recentemente, também chamado de ansiedade climática”.
Retomando a questão proposta no início, podemos pensar o fenômeno do “pet parenting” não apenas como uma simples substituição, mas como uma resposta inconsciente a um mundo percebido como instável demais para abrigar novas vidas humanas. Cuidar de um animal oferece a experiência de parentalidade, mas com um horizonte temporal mais seguro e com menos culpa existencial. Não se trata apenas de uma fuga da responsabilidade, mas de uma forma de preservação psíquica: diante da impossibilidade percebida de garantir um futuro habitável, opta-se por uma forma de cuidado que não perpetua o ciclo de sofrimento para uma nova geração (Dunker, 2023).
Após a pandemia de COVID-19, sobretudo, fomos arrastados para um vórtice onde tudo aquilo que tentávamos manter à distância se impõe ao centro da experiência subjetiva. Vivemos um tempo “desbordado” (Rolnik, 2018), produtor de realidades desnorteadoras – não apenas pela complexidade e diversidade que delas decorrem, mas, principalmente, pela sobrecarga de exigência de trabalho psíquico. O real que irrompe não é apenas o real do corpo ou do inconsciente, mas também o real de um planeta em transformação catastrófica, que interroga nossa própria permanência enquanto espécie.
Se antes o conflito interno ocupava o centro da cena psíquica, com a realidade externa sendo frequentemente secundarizada como fator constitutivo do sofrimento, hoje assistimos a uma inversão: o cenário externo ganha protagonismo e torna-se, ele próprio, um eixo do padecimento subjetivo. Na escuta do psicanalista, é essencial que essa inversão não patologize medos que têm fundamento na realidade objetiva: ecoansiedade e ansiedade climática. Logo, o pavor diante do futuro climático ou das crises políticas não é mera projeção neurótica, mas resposta a ameaças documentadas cientificamente (Safatle, 2021).
Winnicott (1975) nos ensinou que o ambiente é constituinte do sujeito, não apenas pano de fundo para o desenrolar de dramas intrapsíquicos. Hoje, esse ambiente tornou-se, ele próprio, traumático, não por falhar em sua função de holding, que significa assegurar e amparar de maneira a favorecer o sentimento de continuidade de si, o sentimento de existência; mas por apresentar-se como potencialmente não sobrevivente! A angústia de aniquilamento, que Winnicott situava nos primórdios da constituição subjetiva, retorna agora como fantasma coletivo.
Diante de uma realidade que se apresenta como ameaça à sobrevivência e à experiência de estar no mundo, como afinar nossa escuta para captar o que atravessa, de modo assustador, analistas e analisandos? A psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl (2020) nos indaga: como sustentar a posição analítica quando nós mesmos estamos imersos nas mesmas águas turbulentas que nossos pacientes?
A clínica psicanalítica sempre se reinventou diante das transformações do sujeito e da cultura. Hoje, porém, enfrentamos um desafio singular: sustentar a escuta em um tempo que nos confronta não apenas com o mal-estar na civilização, mas com a possibilidade concreta do fim da própria civilização como a conhecemos. Em tempos marcados pela angústia do fim dos tempos, caberia ao analista sustentar uma esperança radical? Seria ele o parceiro da pulsão de vida, que, acanhada pela ação avassaladora da destrutividade, se retraiu para um canto qualquer, sem poder contar sequer com o velho e bom tesão pela vida?
A esperança aqui não seria ingênua, mas radical – no sentido de que vai à raiz da questão (Pelbart, 2019). Não se trata de negar a gravidade das crises que enfrentamos, nem de prometer um futuro garantidamente melhor. Trata-se de sustentar a possibilidade de criar sentido mesmo em tempos de instabilidade. O analista encarnando a capacidade de suportar a incerteza sem desintegração psíquica, demonstrando que é possível habitar um mundo imperfeito e ameaçador, mas sem perder completamente a capacidade de investimento libidinal.
Reconfigura-se, assim, a própria noção de saúde psíquica, em um mundo que produz angústias reais de aniquilamento, onde a capacidade de sentir medo e preocupação pode ser mais adaptativa do que o otimismo incondicional. A negação das ameaças reais pode ser, ela própria, um sintoma (Žižek, 2020). Esses desafios nos colocam diante da necessidade de uma reflexão viva. Somos convocados, individual e coletivamente, a lidar com as crises e com as transformações que assolam o mundo e invadem a intimidade de nossas vidas.
A reinvenção da escuta analítica passa pela maior consideração dos contextos sociais, políticos e ambientais como constituintes legítimos da subjetividade. Isso significa ir além da dicotomia interno/externo para compreender como essas dimensões se entrelaçam no psiquismo contemporâneo. Talvez estejamos vivendo um momento em que a clínica precise se ampliar para acolher essas novas configurações do sofrimento (Birman, 2023).
Atravessados pelo desalento do tempo presente, seguimos na busca por ferramentas que nos permitam continuar – e, quem sabe, reinventar o ofício de escutar. Essa busca é, em si mesma, um ato de esperança em meio ao desespero, uma afirmação da vida mesmo diante dos sinais de morte. Como nos ensinou Freud (1920/2010), é na oscilação entre Eros e Thanatos que se tece a trama da existência humana. Afinal, mesmo nas horas mais sombrias, quando tudo parece anunciar o fim, nós, analistas, precisamos ser permeáveis à pulsão de vida, sustentando a esperança, essa chama discreta capaz de iluminar caminhos ainda não traçados.
Referências:
Birman, J. (2023). Por uma clínica política do sujeito. Civilização Brasileira.
Dunker, C. I. L. (2023). Famílias em transição: novas parentalidades e o sujeito contemporâneo. N-1 Edições.
Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização. In P. C. de Souza (Trad.), Obras completas (Vol. 18). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)
Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In P. C. de Souza (Trad.), Obras completas (Vol. 14). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)
Kehl, M. R. (2020). O tempo e o cão: a atualidade das depressões. Boitempo.
Pelbart, P. P. (2019). Ensaios do assombro. N-1 Edições.
Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1 Edições.
Safatle, V. (2021). Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Autêntica.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971)
Žižek, S. (2020). Pandemia: COVID-19 e a reinvenção do comunismo. Boitempo.
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Fauzi Palis Jr. é membro associado da SBPSP e Rosemary Bulgarão é diretora regional da SBPSP.
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