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Arte e interrogação

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*Silvana Rea

Ao surpreender-se com aquilo que escapa ao estabelecido como os lapsos de memória, a troca de palavras, os sonhos, Freud construiu a Psicanálise e assim ultrapassou os limites do conhecimento. Por sua vez, a Psicanálise sofreu forte reação na comunidade científica do início do século XX, ao abalar a convicção na supremacia da racionalidade. O desejo, a sexualidade infantil e a noção de inconsciente provocaram escândalo e, para surpresa nossa, mesmo hoje desconcerta certos setores da sociedade.

Ainda que as gravuras eróticas de Hokusai tenham sido apreciadas desde o século XVIII e que o conjunto dos Templos do Kama Sutra, em Khajuraho, na Índia, reverenciados nos anos 950, foram declarados patrimônio mundial pela Unesco. E ainda que as fotografias do contemporâneo Robert Mapplethorpe, merecessem concorrida retrospectiva no Jeu de Pomme, muitos foram os artistas injustiçados pela postura de intolerância ao novo. O trabalho de Egon Schiele, um dos grandes do Expressionismo, levou-o à prisão em 1912 por ser considerado pornográfico. No Brasil de 1931o painel de Cicero Dias Eu vi o mundo… ele começava no Recife,  referência na história da arte brasileira, teve cortados fora os três metros que representavam nus. A dimensão da obra e sua mutilação deixaram Mário de Andrade boquiaberto, como escreve a Tarsila do Amaral. Do mesmo modo que ele se chocara em 1915 diante de Homem Amarelo de Anita Malfatti – trabalho que adquiriu durante a exposição antes que a maior parte dos quadros fosse destruída a bengaladas, apesar de não terem conteúdo sexual. Esta atitudes de reação ao ineditismo da   arte lembram que em 1937 Adolf Hitler expôs obras expressionistas na célebre mostra “Arte Degenerada”, como parte de seu bárbaro projeto de eugenia.

A noção de inconsciente e do desejo como motor do psiquismo concebem um homem em direção a algo que o transcende e a algo que sempre ultrapassa o instituído. E que quando segue seu caminho em direção do simbólico, afasta-se dos riscos de ser realizado em ato. É esta uma das funções do trabalho artístico: romper com o estabelecido, transgredir para construir um universo representacional que passa a ser repertório cultural da humanidade. Porque como na Psicanálise, é vocação da Arte manter-se em permanente postura de interrogação daquilo que é dado. Impossível reduzi-las à normatização e regular as suas possibilidades de experimentação.

Silvana Rea é Diretora Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre e Doutora em Psicologia da Arte pela Universidade de São Paulo.

 

 

 

 

 

 



Comentários

2 replies on “Arte e interrogação”

Renato Goldschmidt disse:

Muito lúcido e pertinente este texto, traz à tona um debate muito importante e muito rico. A meu ver caberia até mesmo outro post mais longo aprofundando o assunto. Parabéns!

Gustavo A J Amarante disse:

A arte é o que nos restou de revolucionário: é a utopia enfretando a ideologia, como diria Paul Ricoeur.

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