Os sentimentos de compaixão buscando verdade constituem fatores básicos no exercício cotidiano de maturação do psicanalista.
Sua capacidade de rêverie (memória sonho) será colocada à prova junto à intimidade do encontro tanto em cada sessão de consulta clínica quanto de supervisão.
O analista necessita saber preservar, cultivar e desenvolver equipamento de “pensamentos-sonhos”. Caberá ainda ao analista conseguir ‘sonhar’ a sessão (clínica ou supervisão) em andamento. Sua capacidade intuitiva bem treinada será seu sustentáculo.
A linguagem usada será coloquial e privilegiará o vértice científico em boa companhia de apurado senso de humor que tenha suportes em modelos de natureza estética.
Esta formulação irá requerer suave relacionamento social e político que venham a permitir a composição de uma dupla que possa cultivar um crescendo, o qual possa favorecer clima de intimidade emocional de qualidade democrática, capacitando consequentemente evolução de senso crítico face a momentos de autoritarismo, violência e intimidação.
Bion nos propõe em “Aurora do Esquecimento” [‘Dawn of Oblivion’, Pertshire: Clunie Press – 1979 – p. 138] que “Não há substituto para o crescimento da sabedoria. Sabedoria ou olvido – faça sua escolha. Dessa guerra não há libertação.”
O esvaziamento disciplinado de teoria, desejo e memória visa ao analista, já na sala de espera, preservar sua disponibilidade em torná-lo permeável, em níveis sensorial e afetivo, para o ato de acolher o cliente: analisando e/ou supervisionando.
Penso que a formulação verbal do analista vai requisitar linguagem sintética que venha acompanhada de abstração como expressão do estado da barreira de contato de seu aparelho psíquico no contato com seu analisando e/ou supervisionando.
A experiência em Psicanálise, como metáfora, torna a vida relativamente mais simples, pois ao conseguir reordenar um emaranhado de impulsos dispersos, estará visando ‘enrolá-los em torno de seu carretel pessoal’. Fornecerá deste modo o fio que poderá conduzir a pessoa para fora do labirinto do seu inconsciente.
O fato em si é que a vida está em contínua mudança e que a Psicanálise também está em um começo acompanhada por seus empenhos como que a procurar ainda a se constituir qual uma nova ciência! Mas há muito a ser descoberto: mistérios que nos pressionam e que requerem suficientes doses de energia, humildade e coragem temperadas com pitadas de ousadia criativa.
Como mensurar a quantidade e a qualidade de pensamentos embrionários contidos nos assim denominados “encapsulamentos de natureza autista“?
Suponhamos agora uma abordagem de certas situações específicas inesperadas e que possam acontecer com frequência a partir de metodologia bem articulada assim como na emergência de outras variáveis relacionadas também a inusitadas dinâmicas de grupo.
Determinados fatores inesperados e surpreendentes estarão também na dependência da resolução de fenômenos que dependerão também da plasticidade e precisão do teor de certas qualidades da liderança de quem esteja nas funções de coordenação da dinâmica de trabalho do grupo (ciúmes – rivalidades narcísicas – confusão de línguas).
O estado de mente ideal do analista, na sessão de análise, deve permitir amplo contato com dor mental, respeitando vivências de oscilação intensa entre as duas posições: esquizoparanóide e depressiva (Ps ↔ D). As virtudes de paciência, perseverança e segurança serão exercidas como fatores que garantirão a qualidade de fluidez da continência relacionada ao estado de vigília que favorece a atividade do pensamento inconsciente.
A atenção flutuante do analista dá sustentação para o acompanhamento das livres associações do analisando. Haverá transformações capazes de ‘civilizar’ e viabilizar fantasias inconscientes e preconcepções. Em essência, passa a haver garantia de dupla mão de direção entre ‘consciente ↔ inconsciente’, quando a mente poderá percorrer duplo trilho.
A compaixão madura do analista servirá então de balizamento para celebrar satisfação e prazer ao colaborar na evolução de insight profundo em companhia do analisando. Tais movimentos são significativos em árduas travessias em áreas tomadas por terrores e pânicos que subjazem tanto às catástrofes mentais quanto às ocultas fenomenologias protomentais.
Há personalidades que são extremamente intolerantes à dor ou à frustração capazes de sentir a dor, mas não a sofrem, desta maneira podemos supor que não a descobrem. O analista terá que conjecturar a partir de seu aprendizado com pacientes que se permitem sofrê-la. Além disso, o paciente que falha em sofrer dor, falhará também em ‘sofrer’ prazer. Esse desfecho retira do paciente o encorajamento que permitiria ao receber alívio ocasional ou intrínseco.
Cabe neste momento destacar a valorização da aprendizagem da experiência emocional que dá aval, apoio e nutrição por meio de reservas mentais, as quais nos capacitam a expandir a vida, momentos de fruição de alegria, em companhia dos enriquecimentos da própria realidade psíquica.
Em 21 de dezembro de 1817, John Keats, em uma carta a seus irmãos George e Thomas Keats, refere-se à “capacidade negativa da personalidade” como ‘uma qualidade que contribuiu para formar um Homem de Êxito, especialmente em Literatura, e que Shakespeare possuía tão vastamente’. Capacidade Negativa significa que um homem é capaz de estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer irritação que busque fato e razão.
Será importante a consideração por um balanceamento adequado no uso de intuição e conceituação, que são acompanhantes do timing na arte de interpretação do analista. Assim sendo, as formulações do analista serão apresentadas ao analisando, acompanhadas de certo grau de conjectura imaginativa, permitindo aguardar colaboração crítica do paciente como parceiro presente na dupla. Para haver diálogo, é necessário que os interlocutores (analista e analisando) se ponham de acordo em clarificar de qual vértice emanam as questões que estão sendo tratadas. Cabe o seguinte lembrete: a exacerbação do vértice de ‘cura’ poderá bloquear o vértice de ‘investigação’ na experiência psicanalítica.
Para explorar o universo epistemológico da Psicanálise e os distúrbios do pensamento, Bion, qual arqueólogo da mente adentra pelo mundo mítico-religioso. Passa a correlacionar figuras internas captadas em dinâmica de sessão analítica com modelos extraídos de fontes específicas de narrativas tanto da Mitologia quanto da Religião.
A tradição psicanalítica toma com frequência o teatro como uma das fontes plena de modelos com linguagem estética de forte impacto emocional. No século V a.C., o teatro grego, por meio dos dramaturgos Sófocles, Ésquilo e Eurípides, alcança níveis específicos dessas camadas que habitam as profundezas de nossas almas. Constituem acervo de peças teatrais que atravessam culturas e tempos de nossa humanidade.
Espera-se que a parceria analítica saiba acolher a descoberta do elemento embrionário fruto da fertilidade do par analítico, propiciando cuidados pertinentes para garantir a maturação do produto desta descoberta, afastando precipitações de natureza abortiva como representantes de impulsos filicidas.
No final do século XIX, Sigmund Freud, apoiado na clínica e na peça teatral “Édipo-Rei”, põe a descoberto o Complexo de Édipo, ponto de partida, qual genial constructo, que irá sinalizar caminhos e metodologia específica para gerar novas descobertas em Psicanálise.
Wilfred R. Bion, com certo humor irônico comenta em “Experiências com Grupos” (Imago, 1970) que cada ser humano em diferentes ciclos da vida carrega as marcas afetivas de estar a favor e contra o grupo de que faz parte em razão dos vínculos de amor, ódio e conhecimento na vida grupal. Considera sucintamente que cada família constitui uma escola de intenso treinamento e de fina sobrevivência para a elaboração de fantasias por ciúmes assassinos e suicidas.
Melanie Klein aborda os meandros mais obscuros do sofrimento mental por distúrbios da capacidade de pensar em crianças e nos psicóticos. Usa técnicas de jogo e brinquedos na análise infantil e consegue alcançar com sutileza camadas de um palimpsesto, ao contar intensas paisagens arcaicas que se ligam essencialmente à Guerra de Troia, em narrativas de Homero na Ilíada. O leitor poderá enriquecer-se ao ler o belíssimo texto de Klein “Algumas Reflexões sobre a Orestíade”, publicada postumamente em 1963.
A ousadia dos saqueadores de tumbas na “Cova da Morte”, ao invadi-la e conseguir recuperar joias e tesouros preciosos nela enterrados, rompem com as paralisações, maldições e medos vinculados a barreiras mágicas e religiosas. Tal coragem pode ser considerada como precursora da mentalidade científica na busca de descobrir significados contidos por forças análogas de ocultação repressiva.
Finalizo com a seguinte observação histórica: “No seminário clínico realizado em 10 de julho de 1978 na cidade de Paris, uma de suas últimas apresentações em público, Bion enfatiza o caráter estético do trabalho analítico, em que o setting é comparado ao ateliê de um artista. O psicanalista poderá desenvolver um estilo próprio, conjugando intuição bem treinada e sensibilidades poética e artística com sabedoria filosófica, empatia humanista e disciplinada curiosidade científica na interação com cada um dos analisandos”.
*Antonio Sapienza é médico, psicanalista, membro efetivo e analista didata da SBPSP.
Imagem: M.C. Escher. Bond of Union, 1956.
4 replies on “”
Excelente texto. Promove uma experiência de leitura com um tanto de profundidade. Me levou levou a um recorrido pausado, solene, para poder saborear cada ideia apresentada. Obrigada!
Como sempre Sapienza nos convida a.profundas reflexões, além de nos brindar com seu conhecimento, religando aspectos de maneira enrriquecedora.
Obrigada mestre
Mais uma vez, Sapienza nos presenteia com sua incrível capacidade de locução estética.
E temos esse texto-arte para guardarmos no coração. Obrigada!
O melhor guia de psicanálise.
Grazzie mille, Comendattore.