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Bissexualidade, narcisismo, identidade e a escuta psicanalítica do nosso tempo

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Patrícia Cabianca Gazire

Sobre a bissexualidade

A incerteza de ser homem ou mulher, nenhum dos dois, ou ambos, é própria das neuroses estudadas por Freud, histeria ou neurose obsessiva. A incerteza expande-se, porém, e ultrapassa a questão das neuroses se tomamos o ser humano no sentido ontológico e nos propomos a pensar questões atuais que se impõem aos psicanalistas, como a identidade de gênero, por exemplo.

O tema da diferença sexual colocou-se como o enigma fundamental e constitutivo do sujeito freudiano. Enigma esse que impulsiona o sujeito a uma ou mais “escolhas” sexuais que, em seguida, marcam sua identidade (sexual ou de gênero). Escolha, aqui, não deve ser entendida no sentido intelectual, mas, antes, envolvendo uma série de processos inconscientes que conduzem o sujeito a uma ou outra direção na vida emocional.

Tudo começa com a bissexualidade psíquica. Ao passar pelo processo de castração ou complexo de Édipo a pessoa vive uma série de experiências traumatizantes em que intervém um elemento de perda, de separação em relação a um objeto amado. Essa “falta” impele o sujeito a assumir seu desejo. Mas, nesse momento, ele é lançado diante de um impasse que nunca se conclui: a elaboração da bissexualidade originária.

Há duas maneiras de compreender o complexo de Édipo. Uma delas é a forma simples, baseada na experiência do menino, que nutre sentimentos ambivalentes (de amor e ódio) pelo pai, já que tem desejos incestuosos pela mãe. Nesse processo, as semelhanças e diferenças entre masculino e feminino deixam de ser atribuídas à presença ou ausência do pênis. Ao pênis é conferido o valor de símbolo e, tanto para o menino, como para a menina, a questão passa a ser a ausência ou presença não do órgão sexual anatômico, mas do falo, que simboliza poder, fertilidade, autoridade, etc. Da mesma forma, a ameaça de castração não é o medo concreto de ter o pênis amputado, mas ocorre no plano da fantasia, relacionando-se à função de interdição da realização do desejo.

A segunda maneira de entender o complexo de Édipo é pensá-lo como completo, não partindo do menino, nem da menina, mas da bissexualidade. A ideia é que o complexo de Édipo é bissexual, na medida em que, seja o sujeito biologicamente menino ou menina, todas as relações são perfeitamente possíveis com as figuras parentais no plano da fantasia. Portanto, anatomia não é destino, todo ser humano tem a possibilidade de passear livremente pelo masculino e feminino quando nos afastamos do sexo – ligado à atividade e à satisfação das necessidades fisiológicas – e entramos no registro do sexual – entendido aqui como o pulsional, uma série de excitações que envolvem todo o corpo, desde a infância.

A possibilidade elaborar o complexo de Édipo e de atravessar a “crise” da castração – ou seja, de abdicar de desejos incestuosos, de ter esses desejos interditados e de, com isso, incarnar a função da lei e da ordem necessárias para a vida em civilização –, essa possibilidade só é viável na confrontação com a bissexualidade. E essa confrontação, e a concomitante elaboração da castração produzem um impacto direto no narcisismo, pois perder o pênis – ou falo – põe em perigo a imagem do eu de que a criança dispõe. Muitas vezes, é por meio de um narcisismo exacerbado (posturas onipotentes, arrogância e intransigência em relação ao diferente) que o sujeito se defende da angústia de castração deflagrada diante da necessidade de transformação da bissexualidade originária.

Ou seja: a bissexualidade originária expressa-se por meio do sentimento de ambivalência afetiva (amor e ódio por todos os objetos), sentimento este que tem de ser transformado para que se institua a criação de laços sociais entre as pessoas. Isso implica renúncia ao narcisismo, à onipotência, e aceitação do outro como separado do eu.

Bissexualidade não é polimorfismo. A ideia de bissexualidade parte do pressuposto de que a vida psicossexual ignora a contradição. A bissexualidade não nega que existam dois sexos, ela os acumula. A bissexualidade não reconhece a diferença entre os sexos, ela desempenha as mesmas. O indivíduo que fantasia a noite sexual na cena primária se identifica com os dois protagonistas, ele é um E o outro.

Alguém pode viver a bissexualidade com toda liberdade: ser homem e mulher, em todas as posições identificatórias que os investimentos pulsionais, edípicos ou não, permitem. Essa aparente plasticidade psíquica não impede, no entanto, que a pessoa se sinta oprimida por essa mesma “escolha” que é, na verdade, expressão do determinismo inconsciente. No inconsciente, não há certo, nem errado, nem masculino e feminino; as leis que o regem não são movidas pelas regras da moral e da ética. Quando o inconsciente se faz notar, em um tempo que não pode ser compreendido senão à posteriori, como um segundo tempo, o conflito já está fixado, o caminho do desejo já está traçado e o sintoma já está constituído. Portanto, não há, na verdade, possibilidade de “escolha”. Em sua “escolha”, o sujeito se vê preso, “levado a…”. E precisa poder vir à análise tratar do seu impasse essencial: não há prazer sem desprazer, não há realização de desejo sem sintoma, não há criação sem destrutividade, não há vida psíquica sem conflito, não há conflito sem inconsciente. É isso que nos propomos a escutar como psicanalistas.

 

Um pouco mais sobre o narcisismo

A saída narcísica exacerbada acima referida é resultante do enfraquecimento do eu e não de seu amadurecimento e equilíbrio. O indivíduo “muito” narcísico é aquele que, diante de situações que ameaçam suas certezas e crenças, ou quando perde algo ou alguém, sente-se ameaçado, não tolerando outra saída que não a onipotência: o conhecimento absoluto de si e do outro, o conhecimento absoluto de modo geral, de tudo e todos, o enrijecimento em uma determinada posição social, com posturas arrogantes e intransigentes. A onipotência pode se manifestar ao se querer SER os dois sexos. Minha identidade sexual pode resultar da imagem concretizada do desejo de quem me “olha”: se meu namorado é homossexual, sou homem; mas se meu namorado gostar de mulheres, sou mulher.

Há, aqui, uma relação direta com a instância psíquica que costumamos chamar de supereu – as censura ou consciência moral, o “juiz”. O supereu, herdeiro do complexo de Édipo, forma-se a partir das identificações do eu com a figura paterna de autoridade que são projetadas no exterior – nas leis, na cultura, nos líderes religiosos ou políticos. Se o eu é mal formado ou apresenta problemas em suas fronteiras, o supereu não adquire função recalcante dos conteúdos psíquicos. O funcionamento por meio do recalque seria a saída “amorosa”, construtiva, não narcísica do complexo de Édipo, em que o sujeito se relaciona com líderes que ao mesmo tempo protegem e sancionam, garantindo a convivência em grupo e laços sociais saudáveis. Ao contrário, quando as identificações do supereu fixam-se em imagos fracas, porosas, há um declínio das funções da lei, dos limites e das possibilidades sublimatórias. Os indivíduos ficam presos em uma posição de submissão e obediência cegas a figuras autoritárias – um exemplo disso são os líderes dos regimes totalitários que levam seus discípulos a práticas cruéis sem a possibilidade de discriminação e questionamento. Em termos teóricos, o regime econômico das pulsões entra em uma espécie de colapso e, sem a proteção do recalque, passa a funcionar por meio de intensas descargas, observadas em comportamentos como uso de drogas, automutilação, tentativas de suicídio, atitudes extremadas de amor e ódio etc.

Estamos longe de pensar que “os narcisistas não sabem amar”, afirmação muitas vezes encontrada em discussões envolvendo a ambivalência sexual ou uma indefinição na escolha de gênero. Lembramos que entre um “narcisismo positivo”, ligado à vida e ao desenvolvimento das potencialidades individuais, e um “narcisismo negativo” próprio de comportamentos autodestrutivos, há uma série de possibilidades de amor. Encontramos muitas pessoas cuja bissexualidade não impede de manterem relações afetivas conjugais ao longo de muito tempo.

 

Sobre a questão da identidade

Nós, psicanalistas, com frequência discutimos a questão da identidade imersos numa cultura em que impera o eu. Não podemos esquecer que tanto as “múltiplas identificações”, como a “bissexualidade psíquica”, quanto às divisões da tópica psíquica (eu, id e supereu) recusam toda concepção de cunho identitário. Lembremos ainda que, em Freud, a palavra “identidade” é encontrada nos processos de formação dos sonhos. “Identidade” está a serviço de algo que ainda vai se realizar, algo que se encontra “em processo”. Portanto, a identidade é mais o objeto de uma busca do que a definição de um estado. Talvez seja essa uma proposta de como posicionar nossa escuta na sala de análise, quando nos propomos a tratar pacientes imersos na dissolução/desconstrução da “identidade psíquica”.

 

Referências bibliográficas

André GREEN (1983) Narcisismo de vida, narcisismo de morte, trad. Cláudia Berliner, São Paulo:Escuta, 1988.

Jacques LACAN (1938) “Os complexos familiares na formação do indivíduo” trad. Vera Ribeiro et al, in Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 29-90.

Sigmund FREUD (1908)“As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”, Obras Completas, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Cia das Letras, volume 9, 2013.

__________ (1923) ),“A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”. Edição Standard Brasileira das Obras Completas,volume XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1969.

_________________(1923) “O Eu e o id”, Obras Completas, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Cia das Letras, vol. 16,2011.

________________ (1924), “A dissolução do Complexo de Édipo”, Obras Completas, trad. Paulo César deSouza, São Paulo: Cia das Letras, vol. 16,2011

________________(1925-1931) “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”, Obras Completas, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Cia das Letras, vol. 16,2011.

 

Patrícia Cabianca Gazire é psicanalista e escritora, professora e supervisora de psicanálise do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/Epm. Membro Associado da SBPSP, Doutora em Psicanálise pela Université Paris Diderot (Paris 7) e pela USP, doutoranda em Escrita Criativa pela PUC-RS. Autora do livro “Objeto: modo de usar” pela Editora Blucher (no prelo). Possui vários artigos publicados em psicanálise e seus textos literários podem ser lidos no blog Saperlipopettehttps://patriciacabiancagazire.wordpress.com/



Comentários

7 replies on “Bissexualidade, narcisismo, identidade e a escuta psicanalítica do nosso tempo”

ANA MARIA ANDRADE AZEVEDO disse:

Sem se deter sobre discussões estéreis, sem fazer julgamentos de qualquer espécie, você conseguiu Patricia, expor com clareza conceitos Psicanalíticos fundamentais, para a consideração das questões implicadas no desenvolvimento de uma identidade. Conseguiu também mostrar a importância de conceitos como, o complexo de Édipo, narcisismo e identidade psíquica, enfatizando a ideia de algo “sempre ” em construção, um movimento em busca de …. Obrigada

obrigada a você, Ana, pelo comentário. bjs

Lenice disse:

O texto é esclarecedor gostei.
Mas, não existe “incarnar”, e sim “encarnar”.
Deve ser erro de transcrição.

Oi, Lenice. “Encarnar” é o termo mais usado e preferencial; mas “incarnar” é sinônimo. abraços

Gustavo disse:

“Ao contrário, quando as identificações do supereu fixam-se em imagos fracas, porosas, há um declínio das funções da lei, dos limites e das possibilidades sublimatórias.” Alguém pode me explicar melhor o que é imago fraco e porosas?

Oi, Gustavo. “Imagos” são os modelos de “pai” e “mãe” que formamos dentro de nós desde a infância, baseados na experiência que tivemos com o pai e a mãe reais, mas acrescidos de afetos que são só nossos e que caracterizam nossa individualidade. As imagos norteiam nossos julgamentos de valor, posições morais etc. As imagos podem ser “fracas e porosas” – não densas, inconsistentes – quando resultam de uma interação ambivalente ou confusa entre as experiências da pessoa com o mundo real e seus afetos.

Thiago disse:

Não sou da área, mas acredito que seu texto não tem aporte teórico suficiente para induzir tais conclusões. O mais recente é de 39 anos atrás.
Por favor, traga em suas análises autores e autoras que tratam destes temas mas com discussões atualizadas.

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