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Conversando sobre a obra de Bion

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A ênfase na observação das evidências diretas e a consideração pelo desconhecido são recomendações de W. R. Bion para o psicanalista praticante. E a inserção da Psicanálise nas teorias da complexidade tornou-nos analistas mais ligados ao processo do que ao alcance de conhecimentos. Como escreveu o poeta Antonio Machado, Caminhante não há caminho, se faz o caminho ao caminhar.

Quando Bion propõe substituir o par consciente – inconsciente pelo par finito – infinito, está introduzindo uma grande virada no modo de pensar e exercer a psicanálise: de uma mente estruturada em sistemas para uma mente na qual o inconsciente é o que nunca foi pensado (desconhecido ou incognoscível) e o que se apresenta como consciente é uma transformação resultante do aprender – não aprender com a experiência emocional. Assim, como ele escreveu em Uma memória do futuro, “a própria psicanálise é apenas uma listra na pele de um tigre”.

O fator decisivo na passagem para “pensamento” é uma função (α) desenvolvida no vínculo mãe – bebê através da identificação projetiva. Esta aparece expressa como rêverie na relação mãe – bebê, analista – analisando e, mais abstratamente, como relação continente-contido (♀♂).

Os desenvolvimentos teóricos de W. R. Bion inserem, indubitavelmente, a Psicanálise nas teorias da complexidade, como tem sido ressaltado por diversos autores (Arnaldo Chuster entre eles). As teorias da complexidade obedecem a alguns princípios, dentre os quais destacamos alguns que devem interessar aos psicanalistas: incerteza, não causalidade, infinitude, singularidade, indecidibilidade sobre a origem, negatividade, imprevisibilidade, incompletude. Estes princípios, operando como diretrizes, nos levam a uma particular aproximação ao objeto psicanalítico.

Essas diretrizes acabam nos levando, como seres humanos, à busca por um outro, um par, um diferente para formarmos, às vezes, um casal e assim, poder sentir, criar e pensar. Condição inexorável que pode levar a – e sustentar – uma psicanálise.         

Se, de um lado, as obras de Freud, Klein e Bion formam um continuum, umas se desenvolvendo das outras, por outro as diferenças podem ser de tal magnitude que a noção de um continuum se perde.

1.O que vemos acontecendo hoje é que a atenção dedicada à relação analítica acabou se impondo com mais força, ocupando parte do lugar antes ocupado exclusivamente pelo pensar em transferência (esta ligada ao complexo de Édipo das neuroses). As mudanças, em consequência das teorias de Bion, referem-se ao estado de mente do analista em sessão – capacidade negativa, sem memória, sem desejo, sem ânsia de compreensão – que lhe possibilita se colocar no tempo “presente” da sessão; também muda seu foco de observação – não só para o intrapsíquico do paciente, mas para o intrapsíquico do analista (a pessoa do analista em cena na sessão) e a relação no vínculo da dupla.

2.De forma similar, o foco na situação analítica (disposição para uma relação de par, às vezes de casal, às vezes um casal criativo) ganhou parte do lugar que sempre esteve ocupado pela noção de complexo de Édipo. Há uma enorme ampliação desta noção quando levamos em conta a mente primordial com as cisões e fragmentações, remetendo, por exemplo, rivalidade, competição, exclusão em sala de análise, às suas dimensões alucinatórias. Em situação analítica, relação edípica passa de complexo de Édipo à preconcepção edípica.  

3.Relatos não são fatos. Esta discriminação já havia sido feita por Freud desde o abandono da teoria da sedução. A partir da formulação por Bion da teoria das Transformações, relatos passaram a ser considerados transformações, podendo inclusive ser tomados como fatos (como ocorre nas transformações em alucinose). Essa discriminação levou o analista a ter que Intuir a experiência emocional no encontro e descrevê-la, atividade que passou a estar presente numa área que era ocupada exclusivamente pelo decodificar e interpretar o discurso em termos simbólicos.

4.Noções de desenvolvimento e crescimento mental passaram o ocupar um terreno antes ocupado pelo propósito de cura ou melhora.

Estas ideias aparecem, por exemplo, em dois artigos de Bion da década de 70. Em Evidência (1976), Bion trata do binômio observação – imaginação e a comunicação entre analista e analisando. Enfatiza que o analista deva se centrar naquilo do qual tem evidência direta, mas se indaga: o que seriam essas evidências para cada um? Quais qualidades podem se tornar evidentes numa relação psicanalítica; e conversar sobre isso com o paciente – em qual língua – propondo que cada analista precisa criar sua própria linguagem. Bion acrescenta: “De modo sintético: há um inexaurível fundo de ignorância sobre o qual nos baseamos – e isto é tudo que temos para nos basear. Mas tenhamos a esperança de que exista uma coisa (um isso?) tal como a mente ou uma personalidade ou um caráter e que nós não estejamos apenas falando sobre coisa nenhuma… Mas, continuo não sabendo que linguagem utilizar caso tente me comunicar com alguém que não eu”.

O que compete ao analista é sua Capacidade Negativa, definida numa carta de John Keats a seus irmãos: “… a capacidade de permanecer em meio a incertezas, mistérios e dúvidas, sem ter de alcançar nenhum fato e razão.” Ele continua: “… O único meio de fortalecer o próprio intelecto é não decidir sobre coisa alguma – deixar a mente ser uma via para todos os pensamentos, não uma facção selecionada”. Capacidade Negativa é condição essencial de espera para que a curiosidade do analista possa evoluir: dos elementos desordenados e sem significado para formulações certeiras (Language of Achievement) através do exercício da intuição.

Em Cesura (1975), Bion toca nas questões da transitoriedade do conhecimento e da indecidibilidade da origem de pensamentos e emoções (o O das Transformações). Retomando Freud, que apontou a aparente cesura entre a vida pré e pós natal, Bion parte para as conexões entre mente primordial e mente desenvolvida (capaz de aprender com a experiência e pensar). A ênfase numa cesura que separa e une, funcionando como barreira seletiva, introduz a noção de uma mente espectral com enorme diversidade de gradações. Esta noção tem enorme presença, tanto em nossa clínica como em nossos desdobramentos teóricos.

Em nossas experiências clínicas está presente um amplo espectro de informações, teorias, memórias, realizações, pensamentos e não pensamentos, emoções e não emoções, o que conhecemos e não conhecemos e, finalmente, as pessoas que somos. Como psicanalistas vivemos dentro deste espectro e somos surpreendidos: todo este arsenal se organiza e nos leva a uma ação psicanalítica que pode ser reconhecida como inspirada em nossos teóricos de maior influência – Freud, Klein e Bion.

 

Referências Bibliográficas

Bion, W. R. – Evidência (1976-1987). Revista Brasileira de Psicanálise 129 – 14119, (1985).
Bion, W. R. – Cesura (1975). Revista Brasileira de Psicanálise vol. 15 nº 2, 123-36 (1981).
Bion, W. R. – Turbulência emocional (1977). Revista Brasileira de Psicanálise  21, 121 (1987).
Bion, W. R. – Uma memória do futuro (1991). São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora / Rio de Janeiro: Imago Editora.
Chuster, A. (1999) – W. R. Bion – Novas leituras. Dos modelos científicos.
Frochtengarten, J. (2022) – Blog da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Mion, C. C. (2023) – Aula introdutória ao pensamento de Bion. Jornada Bion, SBPSP – disponível no YouTube, 30 de maio de 2023.

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Carmen C. Mion é presidente da SBPSP. Membro efetivo e analista didata da SBPSP. Docente e supervisora do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes.

Julio Frochtengarten é membro efetivo e analista didata da SBPSP.

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Imagem: Bion em Brasília (1975). Fonte: Centro de Documentação e Memória da SBPSP.

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.      



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