Direito à memória, à verdade e à justiça
Home Blog Ditadura Militar Direito à memória, à verdade e à justiça“É preciso manter a memória, senão a história se repete.”
Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio
24/03/23
O Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça é o dia em que se homenageia na Argentina as vítimas da última ditadura militar, autointitulada “Processo de Reorganização Nacional”, que usurpou o governo do Estado nacional argentino entre 24 março de 1976 e 10 de dezembro de 1983.
Seu objetivo é construir coletivamente um dia de reflexão e análise crítica da história recente. Nas escolas é proposto como um dia para que crianças e jovens, juntamente com gestores, professores e todos os membros da comunidade educacional e local compreendam o alcance das graves consequências econômicas, sociais e políticas da última ditadura militar e se envolvam ativamente para defender a vigência dos direitos e garantias consagrados na Constituição Nacional e no regime político democrático.
No Brasil, foi realizada entre os dias 24 de março e 2 de abril de 2023 a “Semana do Nunca Mais – memória Restaurada, Democracia Viva.” Em continuidade com as diretrizes estabelecidas pela Comissão Nacional da Verdade (PL 7376/10), que foi instalada oficialmente em 16 de maio de 2012. Em 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou seu relatório final à Presidente Dilma Rousseff.
Entre seus objetivos, figuravam: esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos ocorridos entre 1946 e 1988; promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior, e vários outros aspectos envolvidos nessas violações de direitos humanos e crimes.
Estes movimentos da sociedade civil alertam sobre a responsabilidade ética e moral do Estado e de todos os cidadãos de cuidar da memória e da verdade e zelar pela justiça como ato necessário para a manutenção de uma sociedade democrática de um estado de direito. O exercício da justiça que criminaliza os atos violentos, autoritários e antidemocráticos – que em nome “da ordem social” ou qualquer outro bordão usurpa o poder do Estado e trata os opositores como inimigos, justificando a sua destruição moral e corporal, negando-lhes o direito universal a um julgamento justo e imparcial – é o mínimo de respeito à dignidade humana.
O recente filme “Argentina, 1985”, assistido por milhões de pessoas no mundo, premiado pelo Globo de Ouro E candidato ao Oscar, revela o desenrolar do processo judicial estabelecido na Argentina que condenou os comandantes das juntas militares responsáveis pela morte, tortura e desaparecimento de 30.000 cidadãos.
Aqueles que assistiram ao filme – que recomendo vivamente – devem lembrar da figura do jovem promotor assistente Luís Moreno Ocampo (ao lado do promotor principal Júlio César Strasera) que, enfrentando pressões e ameaças de vida, coleta mais de mil depoimentos daqueles que sofreram violência de Estado, possibilitando, no processo judicial, a condenação e a prisão dos comandantes das juntas militares.
Luís Moreno Ocampo, pela sua marcante trajetória, foi convidado e ocupou, durante os anos de 2002 a 2012, o prestigioso cargo de Promotor-Chefe do Tribunal Penal Internacional, corte criada em 1998 pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é um dos 120 países signatários. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional é o tratado internacional que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI). Dentre suas atribuições estão o julgamento dos crimes de genocídio, dos crimes contra a humanidade e dos crimes de guerra, tipificados, respectivamente, nos artigos 6º, 7º e 8º do referido estatuto.
O Estado moderno, além de figura de autoridade, tem a função de auxiliar na regulação da vida coletiva, na construção de normas e obrigações para o cuidado de seus habitantes, povo e nação. Não se trata de bravatas ou sofismas, mas de atos concretos que garantam sustentação social e respeitem os inalienáveis direitos humanos.
Sabemos que a sociedade muitas vezes prefere calar, ocultar ou até mesmo negar os abusos de poder, e seus massacres coletivos, o que nos leva à dificuldade de se estabelecer tribunais nacionais para julgar e condenar os perpetradores de tais crimes.
Freud nos mostrou que a neurose encontra sua ancoragem no recalque, no silenciamento da verdade.
O avanço da psicanálise elucida processos radicais como a negação, a desmentida e a recusa, variações dos modos de se desconhecer ou negativar o desejo, o corpo ou a realidade externa nas múltiplas formas que o Outro encarna. Estes processos tem seus correlatos na vida social, nas instituições, na política, na economia das nações, no uso e abuso do poder.
Lembrando Ferenczi, se o acontecimento é da ordem do fato, o trauma tem suas raízes na desmentida, na impossibilidade de reconhecer o dano infligido. Se o acontecimento é da ordem do factual, o trauma é da ordem do desmonte das referências subjetivas que nos conferem identidade, nossa noção de tempo e continuidade, nossos sonhos e projetos. Exigem, demandam a necessidade de reconstruir um tecido mental esgarçado pela dor. A angústia insuportável, a indiferença, o ódio e o ressentimento exigem recuperar a confiança, a vontade de viver, amar e produzir coletivamente. Como reconstruir esses laços e conexões intrapsiquicamente e com o mundo quando esse direito à verdade e à justiça é negado? Criamos um falso self coletivo que ignora e mascara o histórico que anistia sem reconhecer os crimes perpetuados. Não se trata de vingança, do olho por olho, mas do reconhecimento de que a reconciliação social só pode acontecer após o reconhecimento do dano, da violência perpetuada.
Para a psicanálise de inspiração freudiana, a memória – em toda a sua complexidade – guarda em si a possibilidade de resgatar o tempo da história, não como um tempo passado, mas como um tempo inscrito nas entranhas do presente. O modelo metapsicológico dos sonhos estabelece o movimento regressivo como paradigma, não como retorno ao passado; isso seria uma leitura ingênua e de curto alcance. Alude, antes, à força sísmica de um elemento infantil que se recusa a ser esquecido e se coloca diante da consciência como a esfinge diante de Édipo. Comentando a proposta benjaminiana da história, Didi Huberman (2011, “Ante el tiempo: Historia del arte y anacronismo de las imágenes”, O. A. Oviedo Funes, Trad., Buenos Aires: Adriana Hidalgo) diz: “A revolução copernicana da história terá consistido, em Benjamin, em passar do ponto de vista do passado como fato objetivo para o do passado como fato da memória, isto é, como um fato em movimento, um fato psíquico tanto quanto material” […]. “A novidade radical dessa concepção é que ela não parte dos acontecimentos passados em si mesmos (uma ilusão teórica), mas do movimento que os recorda e os constrói no saber presente do historiador” (p. 155).
É fundamental para a vida coletiva, para o convívio democrático, para a vigência de um Estado de Direito, a elaboração do encontro com a verdade, com o mal estar e descontentamento, ressentimento, com as formas de ódio, luto, perdão.
Para tanto, seria necessário reconstruir a memória dos eventos, reconhecer a dimensão estrutural, social e política dos cenários, carregados de potencial desestruturante e traumático, não apenas no plano individual, mas no coletivo, já que o não reconhecimento da sociedade a condena ao negacionismo e à repetição.
Não estamos apenas no contexto de recordar para poder esquecer, mas numa dimensão traumática, como a apontada por Freud em “Além do princípio do prazer” (1920/1975), que apela à criação de uma rede significante possível para dar conta do estiramento da tessitura simbólica, na qual o humano só é reconhecido pelo inimaginável da dor e do horror.
Como psicanalistas, temos o compromisso ético e cidadão de contribuir, sempre que possível, na promoção – nas nossas instituições, no debate público, na escuta clínica – da reflexão em torno dos conluios que silenciam fatos históricos e que impedem a elaboração do mal-estar, da dor, da violência e do arbítrio cerceando o pleno exercício da cidadania e da democracia.
Concluo este breve texto em homenagem às vítimas do arbítrio em todos os continentes, com as palavras(1) do ex-Promotor-Chefe do Tribunal Penal Internacional Dr. Luis Moreno Ocampo:
“Minha mãe gostava do general Videla porque ele prometeu ordem. Ele decidiu tratar os suspeitos de participarem de guerrilhas como inimigos e matá-los sem um julgamento. Por outro lado, o que fizemos em 1985 foi tratar os generais como criminosos, não como inimigos. Então eles tiveram direitos, tiveram um julgamento justo. A diferença entre julgar ou só matá-los é uma diferença básica e enorme. Isso diferencia uma democracia ou uma ditadura.”
Bernardo Tanis é membro efetivo e docente da SBPSP, Doutor pelo Núcleo de Psicanálise da PUC. Ex-Presidente da SBPSP (2017-2020), ex-editor chefe da Revista Brasileira de Psicanálise (2010-2015).
Imagem: Shutterstock (n. 1690827526)
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