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Winnicott, presente!

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Acredito que a melhor homenagem ao Dr. Winnicott hoje, aniversário dos 128 anos de seu nascimento, é poder presenteá-lo com um texto que possa contar em breves pinceladas a presença viva das suas ideias, na forma como entendo Psicanálise.

Cada um de nós, na sua trajetória única, vai colocar em diálogo as diferentes perspectivas que encontramos nas análises pessoais, supervisões, grupos de estudo, leituras e ensaios de escrita. Espera-se que cada analista encontre seu próprio estilo, sua marca pessoal, suas impressões digitais que se revelam no seu fazer clínico.

Recém-formada, adquiri “O Brincar e a Realidade” (Winnicott, 1975) e iniciei o contato com os conceitos de objeto transicional, espaço potencial, a importância do brincar criativo. Não lembro bem como foram esses primeiros contatos, mas as ideias ali contidas foram ganhando consistência e importância ao longo de tantos anos de prática clínica e estudo da Psicanálise e hoje, certamente fazem parte do meu “sangue” psicanalítico.

Em primeiro lugar destaco a criatividade como fator principal do sentimento de estar vivo num mundo vivo. Para Winnicott, sentir-se vivo e ser criativo são elementos indissociáveis. Nesse sentido, só ganha realidade aquilo que “eu possa criar ao meu próprio modo”. Essa possibilidade de apropriar-se do mundo e de si mesmo criativamente não se dá de forma gratuita, depende de um processo que se inicia nas primeiras relações do bebê com a mãe, que por sua vez está inserida na cultura.

O olhar de Winnicott abrange o entorno, leva em consideração “A criança e o seu mundo” (Winnicott, 1975). Numa frase icônica, ele disse não existir “essa coisa, o bebê” (there’s no such thing as an infant) Winnicott (1960/1983,p.40). Não é possível pensar o bebê separado da mãe e do contexto mais amplo em que ela se insere. Nascemos num estado de dependência absoluta e há um caminho a ser percorrido rumo a uma autonomia, que nunca será total. O lugar de onde partimos – dependência absoluta – é extremamente delicado, essencialmente precário. Devido à essa precariedade, a importância da forma como o bebê é cuidado, alimentado, segurado (“holding”) é fundamental. A “confiabilidade” do ambiente proporcionado ao bebê pode amenizar as turbulências inevitáveis, de tal forma que não sejam tão intensas. A falta de estabilidade pode jogar a criança nas “agonias impensáveis”, que são experiências marcantes onde a “continuidade do Ser” é colocada em ameaça: cair para sempre, despedaçar-se, perder todas as referencias no tempo e no espaço, perder a esperança.

A precariedade da nossa condição existencial se contrapõe à força do encontro humano. Winnicott coloca toda potência do “vir a ser” no encontro. O ser humano cresce dependente do olhar de um outro. O olhar materno é o primeiro e significativo espelho da criança. Ser visto e reconhecido como indivíduo singular é base para o desenvolvimento do Eu. Para ele as condições para oferecer ao bebê o que ele necessita estão presentes na mãe comum, que ele chamou de “mãe suficientemente boa”. É a mãe que ao receber o bebê pode entrar no estado de “preocupação materna primária”, estado de quase completa adaptação sintonizada com as necessidades da criança.

Mas nem sempre as condições são as mais favoráveis…

Acreditar na potência do encontro é a base do trabalho analítico. O processo de vir a ser é contínuo e poroso às experiencias. Permanecemos aberto às influências dos encontros, para o bem ou para o mal. Quer dizer, sempre podemos viver traumas com potencial disruptivo e que ameaçam a integração já conquistada, como também experiencias favorecedoras dos processos integrativos. A experiencia vivida pela dupla analítica promove o encontro de novos sentidos com apropriação da história, permitindo novas integrações. Penso que é como “costurar a história na alma”.

Outro elemento importante reside na capacidade de sobrevivência. O encontro e suas intensidades inerentes – amor impiedoso, sentimentos de ódio – caracterizam o que Winnicott (1975, cap. VI) denominou de “uso do objeto”. Deixar-se usar pode ser cansativo, verdadeiramente desgastante e o analista precisa sobreviver. Manter-se vivo é mais um elemento para a confiabilidade.

Penso que sobreviver está diretamente relacionado ao analista poder se situar na transicionalidade. Esse lugar que Winnicott mapeou e introduziu como um conceito na teoria psicanalítica é a ideia que eu considero mais inovadora e que traz ao campo da interação grande possibilidade de movimento. Ao nos colocarmos nesse lugar de fronteiras móveis, temos mais liberdade de trânsito. É a área da ilusão, onde a criatividade se dá. É o lugar do paradoxo, onde não se questiona se o objeto da necessidade foi encontrado ou inventado. (Dias, E. O., 2003, p. 171)

O “objeto transicional” (o ursinho, a fraldinha, a naninha ou outros), primeira criação do bebê nessa área intermediária, ajuda em todo processo de ser um indivíduo separado e caminhar rumo a autonomia.  O trabalho analítico situa-se nesse lugar, que não é interno nem externo, num tempo que se movimenta pelo passado, presente e futuro – tempo transicional.

Winnicott valorizou a criatividade e o campo da cultura, bem como a liberdade do analista de ser ele mesmo e não se filiar a apreensões dogmáticas e rígidas. Baseado na sua larga experiencia de trabalho em hospitais, que lhe permitiu atender uma quantidade imensa de pacientes, sentia-se à vontade para fazer adaptações no setting e na técnica, quando não era possível aplicar a chamada análise padrão (uso do divã, frequência de cinco ou seis vezes por semana, como institucionalizado na época). Esta flexibilidade permitia ajudar pacientes muito seriamente comprometidos psiquicamente e outros que por algum motivo não podiam entrar em um esquema padrão.

Winnicott também contribuiu no campo social, divulgando a Psicanálise numa linguagem coloquial através de programas de rádio, palestras em instituições médicas, educacionais, entre outras. Foi o primeiro analista a aparecer na televisão. Essa atitude aberta e voltada para o mundo, de um interesse genuíno em doar seu conhecimento para a comunidade, segundo ele próprio, vinha de uma educação familiar religiosa metodista. Vejo aqui também uma fluidez em que o individual e o societário se mesclam, sem se opor.

Coerente com sua noção de processos de amadurecimento, pensava que a moralidade, a Ética e os valores humanitários não poderiam ser ensinados por métodos exteriores ao indivíduo. Esses valores nascem das interações do indivíduo com o mundo, embasadas e continuadas pela forma de ser recebido e cuidado. Ser cuidado com respeito máximo, pelos fundamentos Éticos fundamentais. Precisamos de companhia, solidariedade e compaixão não invasivas.

Gostaria muito de ter conhecido o Dr. Winnicott pessoalmente. Acredito que teríamos afinidades! Imagino uma pessoa gentil, intensa, mas leve, altamente capaz de apreender a dor, mas também divertida e alegre. Tocava piano, gostava de cantar, inventar canções, dançar e desenhar. Ocupava-se em pintar cartões de Natal para os amigos. Tudo isso, além do intenso trabalho atendendo em hospitais e consultório, escrevendo seus brilhantes textos em Psicanálise, e ocupando cargos na própria sociedade de Psicanálise, além de sociedades médicas e de pediatria (Kahr, 2016). Esses aspectos múltiplos que só mesmo uma pessoa “viva de verdade” poderia ter.

Muitos autores perceberam o alcance das ideias de Winnicott, sua originalidade e a importância de sua contribuição para a Psicanálise e fizeram ampliações criativas. Cito apenas alguns, como Ogden, Philips, Bollas, Roussillon e Green. São diálogos que mantêm a vitalidade do seu pensamento.

 O seu comprometimento com uma Psicanálise que preza a liberdade de “ser si mesmo” embasada em Ética bem fundamentada no conhecimento minucioso da Natureza Humana, compõe os ingredientes mais nutritivos da minha formação como pessoa e psicanalista.  

Referências bibliográficas 

Kahr, B. (2016). Tea with Winnicott. Ed. Routledge

Oliveira Dias, E. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Ed. Imago

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Ed. Imago

Winnicott, D. W. (1975). A criança e seu mundo. Ed. Imago

Winnicott, D. W. (1983). Teoria do relacionamento paterno infantil, em O ambiente e os processos de maturação. (1983/1965) Ed. Artes Médicas

 

Mirian Malzyner é psicóloga, psicanalista, membro efetivo e analista didata da SBPSP. Membro da Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP. Coordena seminários clínicos e teóricos sobre Psicanálise e Arte, tendo artigos e capítulos de livros publicados nessa interface. Desenvolve atividades em desenho e ilustração.  

Imagem: Pai, filho e o oceano, de Miriam Malzyner  

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.     



Comentários

One reply on “Winnicott, presente!”

Cassia Barreto Bruno disse:

Obrigada Miriam, texto competente e fluido, leve como seu desenho. Deu vontade de reler essas obras citadas, depois desse seu olhar profundo.

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