Erótica é o tema do vol. 21 (ano 2023) de Calibán, a revista de psicanálise latino-americana da FEPAL.
E por que erótica?
Sabemos que é uma tarefa humana fazer da atividade sexual uma atividade erótica, construindo uma independência entre erotismo e a reprodução como finalidade. Na psicanálise, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” Freud (1905/1969) inscreve a sexualidade biológica no campo do desejo, que erotiza por onde passa.
Trata-se de um processo determinado por nossa incompletude, o que nos condena à dependência do outro. É o desejo que nos impulsiona em busca ao que nos completa. Mas isso traz um paradoxo. Porque dependemos de outrem para erotizar a vida, mas não há encontro que seja capaz de dar plena conta do desejo. Assim, nosso destino é a busca incessante daquilo que nos falta, sem exatamente encontrar.
É esse o teor da fala de Aristófanes sobre o surgimento do desejo erótico, n’O banquete de Platão (2017). Ali, há o relato do mito do Andrógino, que foi retomado por Freud em 1920. Trata-se do ser primordial, simultaneamente homem e mulher, e que castigado por Zeus, foi partido em dois. Uma vez separados, cada parte passou a eternidade à procura de sua metade. Uma reunião que restituiria a totalidade perdida, mas que, paradoxalmente, seria a morte do desejo, uma vez que ele é fruto do parcial e do faltante.
No caminho de construção de si, a sexualidade se erotiza pela mediação das fantasias, sendo a erótica a forma com que cada um se organiza em torno da falta, em torno daquilo que é sempre inalcançável, como nos apresenta o cineasta Luís Buñuel (1977) em seu “Esse obscuro objeto do desejo”.
Irredutível à genitalidade, posto que passa pelo sexual perverso polimorfo, são múltiplas as maneiras pelas quais cada um se configura em sua erótica. E se Freud (1905/1969), desvinculou a sexualidade da biologia, hoje não equiparamos sexo a gênero. Ademais, a diversidade de expressões desejantes e de suas identificações, também compõem uma bandeira de política identitária ou de identidade cultural. O que convoca a psicanálise a pensar sobre o tema, conforme a denúncia de Paul B. Preciado (2020) em sua conferência para psicanalistas na École de la Cause Freudienne, posteriormente transformada em livro e que tem como título Eu sou o monstro que vos fala.
O erotismo liga, mas também está à serviço de seu revés e pode ter outras vinculações, além do princípio do prazer. A busca pela completude pode chegar ao desejo de fusão total com o outro, o que flerta com a morte. Não por acaso orgasmo é petite mort, em francês.
Por outro lado, o filósofo Byung-Chul Han (2013) argumenta que em um mundo com pretensões de transparência, com um cenário de positividade absoluta e no qual tudo se transforma em evidência, não haveria lugar para uma experiência erótica; espetacularizada, ela se transformaria em pornografia. Uma sociedade pornográfica, como ele diz (Han, 2017).
Por isso uma edição de Caliban dedicada ao tema. Contamos com a colaboração de inúmeros autores, psicanalistas e de outras áreas do conhecimento para discutir a erótica em seus mais diversos sentidos. São abordados, entre outros, a escuta de pacientes trans, a questão se haveria a mutação das diferenças sexuais, e a discussão sobre o uso da linguagem inclusiva. E como em todo número da revista o artista que cede as obras para a capa e seu interior é também um autor, contamos com as imagens de Des histoires vraies de Sophie Calle, e com a entrevista que ela cedeu a Mariano Horenstein.
Para quem quiser conhecer as questões da erótica contemporânea, a revista Caliban está disponível na secretaria da SBPSP.
Referências
Buñuel. L. (1977). Esse obscuro objeto do desejo. 102 minutos. coprodução franco-española.
Freud, S. (1905/1969). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” in Edição standard brasileira das obras completas de S.F. v.VII. Rio de Janeiro: Imago.
_____. (1920/2010). “Além do princípio do prazer” in Obras completas v 14. São Paulo: Companhia das letras.
Han, B-C. (2013). La sociedade de la transparência. Barcelona: Herder Editorial.
_____. (2017). Agonia do Eros. Rio de Janeiro: Vozes.
Platão. (2017). O banquete. São Paulo: Edipro.
Preciado, P. B. (2020). Eu sou o monstro que vos fala. São Paulo: Zahar.
Silvana Rea é membro efetivo da SBPSP, da qual foi diretora científica em 2017-2020. Mestre e doutora pela Universidade de São Paulo e editora de Calibán por São Paulo.
Imagem: capa da revista Calibán (Erótica, vol. 21, n° 1, ano 2023)
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One reply on “Erótica”
Como posso assinar a essa revista Caliban?