Expansão do universo mental
Home Blog história da psicanálise Expansão do universo mentalPor ocasião dos 70 anos de fundação da SBPSP, fui convidado a dar meu testemunho a respeito de minha experiência como membro da Sociedade, de 1980 até os dias de hoje. Resumindo muito, vou enfocar principalmente o tema bioniano da expansão do universo mental, com mudança de nível e de vértice.
1. Começo mencionando minha análise com Dona Judith Teixeira de Carvalho Andreucci, com um detalhe que considero altamente significativo: em uma sessão, logo no começo de minha formação, eu disse a ela que havia defendido um doutorado sobre a teologia de São Tomás de Aquino. Ela sorriu e me disse espontaneamente: “Eu prefiro as Confissões de Santo Agostinho!”.
Na hora, tive vontade de argumentar, dizendo que talvez ela não conhecesse Santo Tomás tão bem quanto eu. Mas na continuação de nossa conversa, ela mesma chamou minha atenção para o fato de as Confissões de Santo Agostinho poderem ser consideradas uma antecipação das grandes intuições de Freud. Santo Agostinho precursor de Freud, especialmente em sua maneira de considerar o mistério da mente humana.
A partir desse momento eu voltei a ler Santo Agostinho, e percebi como Dona Judith estava me propondo uma expansão do universo mental, especialmente no tocante à maneira de considerar o humano em sua originalidade peculiar.
2. Uma segunda situação importante para mim, no início de minha formação, foi analisar mais profundamente a experiência que levou Freud a escrever sobre o “Mal estar na Civilização”. Com o nazismo perseguindo os judeus, Freud viu-se levado a ir morar na Inglaterra e de lá fazer uma crítica autoimplicativa à cultura da época no resto da Europa.
Também eu tive que deixar o Brasil em 1969, uma vez que tinha sido condenado por ocasião do Ato Institucional número 5. Ao ler o texto de Freud, pude analisar ainda melhor o contexto tanto da Revolução Cultural na França (maio de 1968) como da Revolução Tranquila no Québec e a Revolução Militar no Brasil. Três revoluções, mas com significado histórico característico dos países envolvidos. Circunstancialmente, eu participei dos três: na França, no Canadá francês, no Brasil! E Freud me ajudou a fazer uma leitura crítica das três revoluções.
3. Uma terceira situação importante para mim tem a ver com a psicanálise francesa, a começar por Lacan. De fato, em minha história pessoal, costumo dizer que a França é minha segunda pátria. Não só porque desde os onze anos fui estudar com os padres dominicanos franceses na cidade de Uberaba, mas porque também minha formação universitária se deu na França e na Bélgica, e mesmo minha tese de doutorado, em Roma, foi escrita e defendida em francês.
Aliás, eu estava em Roma quando Lacan publicou seu Rapport de Rome, com o título Função e Campo da palavra e da linguagem. Por outro lado, meu orientador de tese em Louvain, o professor De Waelhens, era amigo pessoal de Lacan.
Por todos esses motivos, não digo que me tenha tornado lacaniano, mas me tornei especialmente sensível à crítica que André Green lhe dirigiu, não apenas em seu Rapport de Paris, mas particularmente em seu livro sobre o discurso vivo. Dito de maneira histórico-crítica, sofri a influência de Lacan mas também de seus comentadores críticos, a começar por André Green, especialmente por ocasião de sua vinda a São Paulo, a convite da SBPSP.
4. De fato, nessas alturas de minha formação, era inegável a influência de Melanie Klein, não só no contexto da história da psicanálise inglesa, mas também da SBPSP. Eu quase diria que a maioria dos professores, e também dos candidatos em formação, aceitava a influência dos kleinianos, principalmente com ênfase na formação do inconsciente infantil.
De minha parte, a influência de Melanie Klein foi menor, principalmente porque desde muito cedo eu me preocupei com a psicanálise de adultos e até mesmo de idosos. Neste sentido, principalmente no Congresso de Belo Horizonte, pude fazer uma retomada do livro de Melanie Klein sobre Inveja e Gratidão. E, sem dificuldade, pude mostrar como Melanie Klein fala principalmente das crianças, e muito mais da inveja que da gratidão. E eu aceitei o desafio de falar sobre a gratidão ao longo da vida, principalmente na terceira idade. Sem negar a importância de Melanie Klein, eu me propunha ir além dela bem como de Lacan, com a ajuda de Bion.
5. Aliás, num de meus livros, eu lembro que Lacan nos convidava a um Retour à Freud. Mas logo em seguida, com Bion, eu acrescento: “tendo voltado a Freud com a ajuda de Lacan, agora vamos em frente, com a ajuda de Bion”.
Foi um pouco o que aconteceu no contexto da Sociedade Britânica de psicanálise. Quando Freud morreu, muitos perguntaram: “Quem vai ser o herdeiro de Freud – sua filha Ana Freud ou Melanie Klein?”. Uns ficaram a favor de Ana Freud, mas muitos outros a favor de Melanie Klein. No entanto, Bion e Winnicott se pronunciaram nos seguintes termos: “Nem uma nem outra, nós queremos ser nós mesmos – num Middle Group”.
Apesar de ter sido analisado por Melanie Klein, Bion (… e Winnicott) preferiu ser ele mesmo com a ajuda de todos os que vieram antes. Por isso, eu mesmo escrevi um livro com o título “Bion e o futuro da psicanálise”.
6. Bion corajosamente nos propõe uma psicanálise depois de Freud, depois de Klein, depois de Lacan, sem negar o que recebeu deles, mas reconhecendo que a psicanálise não para de crescer (assim como toda análise é … interminável).
De maneira mais explícita, Bion propõe a expansão do universo mental, com uma frase ao mesmo tempo corajosa e desafiadora: “manter os terminais abertos para captar os sinais da realidade última, venham eles de onde vierem”. Ao mesmo tempo liberdade de pensamento e respeito para com a verdade.
Mais ainda, Bion não hesita em afirmar que SER é mais importante que conhecer. Com isso, ele distingue, e põe em prática, os três modelos epistemológicos: filosófico-científico, estético-artístico e místico-religioso.
Com isso, Bion nos proporciona, e a mim particularmente, uma experiência extremamente rica, capaz de criticar outros autores, mas também de acolher sua contribuição. E é o que acontece especialmente no caso de outras culturas. Bion nasceu na Índia, viveu na Europa, morou na América do Norte, veio várias vezes à América do Sul – como um cidadão do universo.
7. Por tudo isso, acho também que Bion, e sua psicanálise, podem ajudar-nos a ir além da cultura atual, levando em conta os primeiros sinais do que vai acontecer no século XXI. Harari e Dana Zohar certamente vão além de Bion, mas num caminho preparado por ele. Não por acaso eu escrevi o livro Bion e o futuro da psicanálise.
Com isso, espero ter dado meu testemunho, numa experiência que se tornou possível com a ajuda da SBPSP, reconhecendo ao mesmo tempo que nem ela, nem nós, encerramos nossa caminhada.
Neste sentido, e indo além de Melanie Klein, gostaria de manifestar minha gratidão para com todos os membros da SBPSP, colocando à disposição dos interessados os livros de psicanálise que escrevi e vou enviar à Biblioteca da Sociedade. São mais de vinte volumes – já editados, ou pelo menos mimeografados.
E um abraço a todos os leitores.
Antônio Muniz de Rezende nasceu em Minas Gerais, no ano de 1928. Membro efetivo da SBPSP e membro honorário da SBPCamp. Professor aposentado da Unicamp. Autor de livros de psicanálise.
Imagem: Sonia Rezende