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Felicidade tem a ver com limites?

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Fazer uma reflexão sobre a importância dos limites como um aspecto fundamental na vida de todos os seres humanos, sobretudo na infância, implica na consideração de diversos fatores que podem nos levar a um maior entendimento do que significa “ser feliz”.

Um desses fatores refere-se a presença do sentimento de frustração nas situações em que a realidade se apresenta como imposição dessas restrições e limites. Frente à frustração, podem ser experimentados sentimentos de dor, raiva, contrariedade e ódio.

Observamos que, muitas vezes, a tendência das pessoas é de não reconhecer esses sentimentos e tentar negar a realidade, ou até mesmo fugir e fingir que nada ocorre; outras vezes, se sentem mais capazes de entrar em contato com essas vivências e a partir delas encontrar alternativas, mas isso demanda de nós um certo amadurecimento.

O desejo é ilimitado

Na infância, o sentimento de frustração pode tornar-se muito frequente em função do desejo da criança, que é ilimitado e não leva ainda em conta os aspectos da realidade. É característica da natureza do desejo que este seja ilimitado, desmedido, impregnado por fantasias de tudo querer e de tudo poder. Só com o desenvolvimento e com a ajuda do adulto é que a criança pode ir aprendendo a restringir certas vontades, a trocar uma coisa por outra, a aceitar que existe uma hora para cada atividade e, mesmo que seja prazerosa, em certo momento pode precisar ser deixada de lado e substituída por outra coisa.

Um aspecto bastante importante a ser considerado é o da onipotência dos pensamentos, fantasias e desejos infantis. A criança imagina que é toda poderosa e fica muito assustada com a força e intensidade que seus sentimentos podem ter. Por exemplo, se está hostil, pode imaginar que a sua raiva é capaz de atingir o outro (como a própria mãe) de forma destrutiva e arrasadora e a partir disso a criança pode se sentir culpada e deprimida. O sentimento de culpa também indica que, naquele momento, a mãe que está sendo tão odiada é também a mãe amada, da qual a criança depende e nutre fortes sentimentos de carinho. Na fantasia da criança, o amor que é vivido intensamente pode ser expresso como voracidade; vontade de sugar a mãe toda para dentro de si e mantê-la presa e sob controle.

É importante ressaltar que estamos falando de mecanismos mentais bastante primitivos, ou seja, fazem parte dos primórdios da vida psíquica. A psicanalista Melanie Klein, influenciada pelos pensamentos de Freud, deu atenção especial para esses mecanismos primitivos e muito precoces e observou que, desde os primeiros meses de vida, os bebês já se viam envoltos nessas fantasias. Faz parte desse começo esta forma indiscriminada de lidar com o mundo interno e com o externo, com o que é fantasia e com o que é realidade. Desta forma, a criança, ou mesmo o bebê, dá asas à sua onipotência, pois não está ainda habituado a confrontar seu mundo de fantasias com a realidade e com os fatos. Afinal, a realidade aponta que ela é bastante dependente, precisa da permissão dos pais para praticamente tudo, com poder de decisão bastante restrito e pouca autonomia.

Temos observado que a brincadeira e a dramatização são formas de utilizar a criatividade para a criança poder expressar seus desejos de imitar o adulto e de exercitar o seu “poder” sem consequências danosas para ela. Neste sentido, a escola pode ter uma função muito importante, pois se torna um lugar privilegiado para este aprendizado, na medida em que a criança passa pela socialização, onde todas estas experiências estarão presentes.

O funcionamento mental: prazer e desprazer 

Por todas essas razões, este é um processo lento e bastante trabalhoso, já que implica em renúncias. Não é fácil para a criança (e nem para o adulto) abandonar algo conhecido e prazeroso. Freud descreve dois modos pelo qual o aparelho mental funciona: o primeiro é regido pelo princípio de prazer/desprazer; o outro pelo princípio da realidade.

No primeiro modo, o que predomina é a busca do prazer a qualquer custo e este é conseguido através da descarga de qualquer aumento de tensão. Se a criança está com raiva do amigo, vai lá e o empurra, chuta, bate ou morde. Dessa forma, se vê temporariamente livre do desconforto, do aumento de tensão interna, através deste tipo de descarga motora e corporal.

No segundo modo, o que se considera é a realidade, ou seja, como suas ações afetam o mundo a seu redor. Também está em jogo a possibilidade de antecipar a ação através do pensamento. Então, a criança já pode considerar o amigo de outra forma, possivelmente não precisará bater, e poderá se expressar através de palavras. Isso implica numa maior tolerância com relação ao seu próprio desconforto e aumento de tensão interna.

Educadores e pais se encontram frente a uma situação difícil e delicada: não é fácil pegar o filho na escola e encontrá-lo com uma marca roxa na bochecha. É importante considerar que a presença do adulto pode restringir certas atitudes das crianças, mas não é possível impedir e controlar tudo, principalmente num grupo de crianças onde esta forma de expressão ainda é a que prevalece. Todas as crianças passam por esta fase, é importante notar que é algo passageiro e que, logo que lhes é possível, vão encontrando outros modos de expressar seus sentimentos.

Linguagem e pensamento são aquisições posteriores, que vêm com o desenvolvimento intelectual e sobretudo emocional. Neste sentido, podemos observar um movimento no desenvolvimento infantil com relação à expressão das emoções, que vai dos aspectos mais concretos e corporais para formas mais abstratas e complexas que incluem a linguagem, a capacidade para a simbolização e para o pensar.

Com relação ao desenvolvimento cognitivo, Jean Piaget chegou a conclusões muito próximas a estas. Apontou que fazer renúncias e abrir mão de coisas conhecidas faz parte do nosso desenvolvimento. Freud chama a atenção para o fato de que o homem só pôde criar a civilização a partir do momento em que aceitou, dolorosamente, abrir mão dessas formas arcaicas e primitivas de convivência. A civilização e a cultura só podem ocorrer com a inclusão de formas mais evoluídas de expressão como a linguagem, a simbolização, a arte, a música, dentre outras, acessíveis à capacidade de desenvolvimento do ser humano.

Retomando a visão de Klein, que, através da sua experiência clínica e de uma observação bastante cuidadosa, notou que o amor e o ódio fazem parte da natureza dos sentimentos humanos. Quando o bebê passa pela experiência da frustração (por exemplo, se está com fome e tem que aguardar a presença da mãe para ser alimentado), vive uma situação interna caótica e desorganizada. Em contrapartida, quando está saciado e gratificado, recupera um bem-estar e uma organização.

As primeiras experiências emocionais são vividas de forma tal que, quando a mãe atende às necessidades do bebê, ela é “boa” e, ao contrário, quando o frustra, ela é “má”. No primeiro caso, a criança pequena identifica a mãe como a “fada”, ou seja, aquela que tudo pode e tudo dá. Opostamente, ao frustrar-se, a criança identifica a mãe como a “bruxa”, que nada tem de bom a oferecer. Por isso os contos de fada fazem tanto sentido para o mundo interno da criança, pois retratam a oposição entre o bem e o mal. Assim, inicialmente, os processos psíquicos infantis caracterizam-se por vivências intensas e parciais em relação ao outro, que frustra ou gratifica. Quando gratifica, o outro é amado, adorado e querido; no momento seguinte, em que a criança é frustrada, o outro passa a ser objeto de agressão e ódio.

A característica destas vivências parciais é que a mudança de estado é brusca e pode ir de um extremo ao outro – da idealização ao ódio profundo, ou vice-versa. Estas vivências fazem parte da vida mental de todos nós: quanto mais jovem e menos amadurecido, mais intensas e extremas elas se apresentam. A noção do outro como ser independente e separado, como aquele que frustra e ao mesmo tempo gratifica, é bem posterior. Nestas primeiras e primitivas vivências, o que é bom está dentro, enquanto o mau está fora, desta forma não há responsabilidade pessoal. Ou seja, o outro é responsável pela minha dor, por eu ter caído, por ter me machucado, por não conseguir fazer as coisas, etc.

Somente quando a criança percebe que a mãe, as pessoas e a realidade não são totalmente boas e nem totalmente más é que vai integrando esses aspectos dentro de si mesma. Dessa forma, as experiências emocionais gratificantes (boas) e as frustrantes (más) passam a coexistir dentro dela e na sua relação com as pessoas e com o ambiente que a cerca. Esse progresso no desenvolvimento emocional permite que a criança aceite melhor as adversidades e restrições, pois as frustrações deixam de ter um caráter tão terrivelmente ruim na medida em que também são consideradas as experiências boas. Surge também a culpa e o medo de perder o outro, a tendência a querer reparar o “mal” que na sua fantasia cometeu. A preocupação da criança não está mais tão centrada em si mesma, existe também uma preocupação genuína pelo outro.

Como já dissemos, esse progresso é um processo lento e trabalhoso. Quem pode ajudar a criança nesse sentido são os educadores e, sobretudo, os pais. Junto a isso, a análise pode também ser uma oportunidade. Portanto é fundamental que os adultos também possam aceitar os limites e as frustrações da vida, considerando os aspectos externos (princípio da realidade), ou seja, o adulto também precisa compreender que frustrar o filho (dar limites) não é ser “mau” e sim dar-lhe proteção e cuidado. Se isto não é possível, as “regras” de como educar e castigar acabam falhando.

É preciso que os pais possam aceitar as reações de agressividade e sofrimento dos filhos perante suas frustrações, de maneira a permitir que eles se desenvolvam. Freud dizia que a capacidade para pensar é uma atividade bastante complexa, que só pode se desenvolver no ser humano quando ele é capaz de se confrontar com obstáculos e dificuldades para, a partir daí, encontrar novas soluções e alternativas.

O sofrimento faz parte da vida e tentar poupar os filhos dessas experiências é prejudicá-los no enfrentamento da vida. Nesse sentido, o que a psicanálise nos mostra é que só através dessas vivências a criança pode formar um aparelho mental mais fortalecido para que possa compartilhar experiências de “prazer” e felicidade, apesar do “desprazer” e frustrações.

 

Referências

Cintra, U.M. E; Figueiredo, C.L. (2010). Estilo e pensamento. Melanie Klein.

Freud, S (1911). Os dois princípios do funcionamento mental. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12). 

PIAJET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.

Miriam Altman é membro da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela USP.

Imagem: A partida de xadrez, Sofonisba Anguissola (1555)



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