Encontre psicanalistas membros e membros filiados


Freud, ainda

Home      Blog      Sigmund Freud      Freud, ainda

A psicanálise nasce com a perspectiva de ampliar horizontes, olhar mais longe. Diante disso, o que significa ler Freud no século XXI? Essa pergunta é tema do livro de Gilson Iannini – psicanalista, professor da Universidade Federal de Minas Gerais –, recentemente publicado: Iannini, G. Freud no século XXI, editora Autêntica, 2024. Façamos a mesma pergunta, acrescentando um detalhe importante: o que significa ler Freud no século XXI, no Brasil?

A psicanálise brasileira, como o próprio Brasil, nasce no contexto da colonização europeia. Podemos retomar um pouco a história. Fato hoje já bastante conhecido, o início do movimento psicanalítico no Brasil se dá vinculado ao movimento modernista de 1922. Assim como esse movimento artístico pretendia tomar a arte europeia e digeri-la a partir do mundo cultural brasileiro; o movimento psicanalítico brasileiro, também, se forja de maneira semelhante: isto é, com base, não somente em textos de autores europeus, mas também em psicanalistas europeus que vieram para o Brasil, a maioria deles refugiados da II Grande Guerra (1939-1945). É o caso da Dra. Adelheid Koch (1896-1980), psicanalista judia alemã que imigrou para São Paulo para dar formação aos psicanalistas que fundariam a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Sua primeira paciente foi uma jovem mulher negra, neta de escravos e imigrantes italianos, formada em sociologia: Virgínia Bicudo (1910-2003). Nesse encontro, já podemos ver a maneira como a psicanálise brasileira ganha um sabor próprio: em nosso país mestiço, temos uma psicanálise mestiça na qual se mesclam realidades diversas que agregam aos saberes vindos da Europa os conhecimentos e o banzo trazidos em navios negreiros da África, assim como as crenças e os mitos dos povos originários. Mesmo assim, até há poucos anos, os autores que povoavam os trabalhos de analistas brasileiros eram em sua maioria europeus e americanos. Há alguns anos, porém, tem havido um processo de “decolonização” na psicanálise, no qual, aos poucos, constrói-se um pensamento mais próprio do nosso ambiente cultural e social. Se, durante muitos anos, a palavra psicanalítica excluía parte do nosso universo cultural, podemos dizer que essas vozes silenciadas agora se fazem ouvir em publicações psicanalíticas que abordam vários vértices de nossa cultura. Isso amplia e enriquece o movimento psicanalítico brasileiro e o latino-americano. Somos fruto dessa hibridização de povos e temos autores originais que trilham diversas linhas do pensamento psicanalítico.  Podemos dizer que a psicanálise brasileira criou uma língua própria, e uma mudança de língua é uma mudança de mundo.

Talvez, desde sempre, a psicanálise, essa disciplina ainda de certa forma jovem, tenha sido uma mudança de linguagem e daí, um possível novo mundo, uma nova forma de pensar a psique humana. A escuta de Freud às mulheres silenciadas – cujos sintomas emergiam de um corpo pulsional que expressava seu sofrimento psíquico – abre um novo pensar, com lógica própria: a lógica do inconsciente. Não seria esse um novo idioma do humano? Criado, inicialmente, no espaço da sala de análise, entre duas pessoas, uma analista e uma analisante, e seus desejos de um compromisso de conhecimento? No encontro com a alteridade, a psicanálise propõe-se a capturar, em outras línguas, outros mundos. A escuta psicanalítica tem na palavra seu elemento de transformação, de ruptura. 

A história se faz de rupturas e da criação de novos mundos. Neste momento, alcançamos um estágio em nossa civilização no qual a ciência é um instrumento não só de autonomia e emancipação, mas também de controle e opressão. A pulsão de saber, trabalhada por Freud em alguns de seus textos, comporta a curiosidade genuína, mas com ela, a angústia da incerteza. Assim, o saber é uma forma de poder, e, como todo poder, carrega em si a necessidade de domínio sobre o outro ou sobre o próprio psiquismo. A criatividade caminha lado a lado com nossa condição destrutiva, em difícil equilíbrio entre Eros e Thanatos.

Na atualidade, a destruição pode chegar em grande escala, por armas que aniquilam o mundo, ou por desastres ecológicos globais arrasadores, ou ainda pelo poder das redes sociais e os “cancelamentos”, armas mortíferas de uma sutil violência minimalista. A verdade e a não verdade coexistem e frequentemente se confundem no emaranhado de informações. “Quem lê tantas notícias?”[1] já cantava Caetano Veloso, há cinquenta anos. O excesso, marca de nosso tempo, faz com que rapidamente o novo torne-se obsoleto, levando à alienação, à banalização. A sociedade do “tudo” se traduz em vazio e solidão.

O filósofo Byung-Chul Han (2021/2022) nos adverte que a fugacidade do mundo das informações nos desestabiliza, nos desorienta. Vivemos um inebriamento, tomados pela falsa “liberdade” de consumir bens e informações. Assim, tanto as coisas – que, pelo excesso, perdem seu tom afetivo –, quanto a enorme quantidade de informações, tornam-se “não-coisas”. Desaparecem os objetos que realmente nos significam: aqueles que em nosso cotidiano ganham valor afetivo, impregnados pelas nossas histórias e memórias. Como diz Han: “Acostumamo-nos a perceber a realidade em termos de estímulos, de surpresas. Como caçadores de informações, nos tornamos cegos às coisas silenciosas, discretas, até mesmo coisas ordinárias, trivialidades ou convencionalidades que carecem de estímulo, mas que percebemos em nossa vida diária.” (p.9). No desvario consumista de objetos ou de “seguidores” nas redes sociais, o que surgem são “inobjetos” (Flusser, apud Han, p.12, nota de rodapé 3), não-objetos, não-pessoas. Nesse desinvestimento célere, os momentos escorrem por entre os dedos, levando a própria história na banalização da palavra, que, como diz Iannini, perde sua magia e empalidece. Entre a desorientação, o pânico, ou a paralisia alienante, sob o signo da urgência, emerge um Eu atônito.

A palavra “atônito” tem diversos significados. Pode não só expressar alguém tomado de espanto, surpreso e instigado, admirado, mas também tem o sentido de confuso, aturdido, em vertigem. De todos esses significados, podemos retirar algo em comum: o sujeito atônito está sem palavras. Assim, pensar a psicanálise, a “cura pela palavra”, em tempos de palavras frágeis, em tempos de um Eu atônito, é a questão à qual cabe dedicar uma investigação e com isso ampliar o pensamento metapsicológico.

Iannini, em seu livro, menciona uma carta de Freud a Ferenczi de 12/5/1919 (p. 251). Nela, Freud refere ter realizado três tarefas quase simultaneamente.  Escreve Freud: “Eu não apenas concluí um rascunho de Além do Princípio do Prazer, mas também retomei mais uma vez o pequeno escrito Das Unheimliche, e alcancei o fundamento psicanalítico de A Psicologia das Massas.” A partir dessa citação, Iannini destaca três vértices da pesquisa freudiana: a reformulação clínico-metapsicológica das pulsões, o estudo estético-literário de “O Infamiliar” e a vertente político-social da psicanálise que considera o sujeito em trânsito, entre o individual e o social. Esse triângulo representa, segundo Iannini, não apenas o resultado de uma reconfiguração histórica a partir da realidade criada pela 1ª Grande Guerra (1914-1918), mas também expressa um solo comum da experiência freudiana desde o nascimento da psicanálise. Esse solo comum é o espaço no qual a psicanálise se desenvolve e cria suas vertentes, a partir da ideia de um mundo pulsional que transita entre fantasias e realidades, entre o individual e o coletivo, no regime estético e político próprio de cada momento histórico.  É esse o solo que herdamos e no qual desejamos desenvolver uma pesquisa com base nas realidades que se traduzem neste sujeito atônito, realidades inseparáveis entre si, interligadas como em uma fita de Moebius. 

Diante da especificidade da escuta analítica, os restos que escapam das palavras e silêncios, seus rastros, sons e ritmos, podem ser significados e se transformar, ganhar volume e dar calibre à palavra que assim retoma cor e magia. Como instrumento de subjetivação, possibilita a construção da própria história.

Na citação que fiz acima, de Byung-Chul Han, esse autor escreve que nos tornamos cegos às trivialidades do cotidiano que carecem de surpresas, mas, ele continua, “Elas carecem de estímulo, mas nos ancoram no ser.” Ancorar no ser significa viver “a dor e a delícia de ser o que é”[2], como diz o lindo verso de Caetano Veloso. Diante de tantas situações de alienação, talvez a psicanálise possa ser uma das possibilidades que sustentem o mal-estar necessariamente encravado nessa experiência.    

Na esteira dessa ideia, a psicanálise entraria na contracorrente como forma de resistência, lugar que desde sua criação ocupou pelas mãos de Freud. Hoje, ocupará outras mãos, se fará ouvir em outras vozes. Temos hoje aqui, no Brasil, muitas maneiras de ler Freud em português. Não somente porque a cada momento histórico e cultural a leitura de Freud ganha outras cores, mas também porque já existem, além da tradução standard traduzida do inglês, algumas edições traduzidas diretamente do alemão, traduções que reproduzem melhor a coloquialidade da linguagem freudiana, que, mesmo sendo uma escrita de há um século, ressoa, como todos os clássicos, nos dias de hoje. Ler Freud no Brasil, com base nas novas traduções que trazem também o olhar dos comentadores brasileiros imersos nesta cultura híbrida, mestiça, ganha novas configurações, o que dá aos textos o frescor da atualidade, do qual o livro de Gilson Iannini, mencionado no início deste texto, é um belo exemplo.

Para concluir, gostaria de apontar que a partir do solo comum freudiano, em meio a crises e traumas, o passado nunca está concluído. Cada um de nós é possuidor da sua parte de uma herança em comum, e tem a possibilidade de transformá-la, manter o movimento de singularidade ao preservar as diferenças culturais com sua potência de criatividade, e assim manter viva e possível a psicanálise em tempos de um Eu atônito.  

 

Referências:

Han, B-C (2023) Não-coisas: Reviravoltas do mundo da vida. Trad. Rafael R. Garcia. Ed. Vozes (originalmente publicado em 2022)

Iannini, G. (2024) Freud no século XXI: Volume 1: O que é psicanálise. Ed. Autêntica

 

[1] Verso da canção Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, do álbum Caetano Veloso (1967)

[2] Verso da canção Dom de iludir, de Caetano Veloso, do álbum Totalmente demais (1986)

.

Raya Angel Zonana é membro da SBPSP

.

Imagem: Composição (Figura só), Tarsila do Amaral (1930)

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.   



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *