Freud e o futuro
Home Blog Sigmund Freud Freud e o futuroEm homenagem ao criador da Psicanálise e neurologista austríaco Sigmund Freud, que nasceu em 06 de maio de 1856 e hoje estaria completando 168 anos, publicamos um capítulo do livro Freud (Publifolha) de autoria de Luiz Tenório Oliveira Lima, membro efetivo e professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
…….
Há cem anos, quando Freud elaborou as teorias, conceitos e procedimentos técnicos que deram origem à psicanálise, essa nova maneira de interpretar o sintoma psíquico – que, ao mesmo tempo, relacionava a mente com sua base material, o corpo, e conferia ao comportamento humano um caráter simbólico, legível – operou uma revolução no pensamento da época. De tal forma que, já nos anos 20, a psicanálise estava totalmente aceita nos meios cultos, independentemente de gerar conflito.
Por ocasião da morte de Freud, em 1939, W. H. Auden (1907-73) escreveria em sua homenagem um poema, parte do qual foi citado como epígrafe deste livro. Segundo Auden, a psicanálise não era mais a teoria de uma só pessoa, mas todo um clima de opinião. O poeta inglês queria dizer com isso que a teoria freudiana se disseminara de tal modo que certas noções básicas estariam assimiladas pelo pensamento da época, mesmo por pessoas que nunca haviam lido Freud e nem sequer ouvido falar dele. A psicanálise se difundiu e influenciou várias áreas do conhecimento, entre elas as ciências sociais, a ética, a psicologia, a pedagogia e a psiquiatria.
Quanto ao futuro da psicanálise, terá ela alcançado seu limite? Que perspectivas têm a psicanálise e as ideias de Freud, entendidas como o conjunto de conceitos psicanalíticos em que se incluem a noção de inconsciente, a de instinto, o complexo de Édipo, a teoria da mente e a ideia da transferência?
Dado que Freud agora é um clássico, poderíamos dizer que ele será relido e transformado pelas futuras gerações e não morrerá nunca. Mas, do ponto de vista da psicanálise como disciplina com vida própria, independente de Freud, quais os novos autores que estão contribuindo hoje para seu desenvolvimento?
Para responder à pergunta, pensando nas afinidades que a psicanálise mantém com outras áreas do conhecimento, como a literatura, a poesia, a arte e as ciências sociais, podem-se usar as categorias que Ezra Pound menciona em seus ensaios sobre poética, ao analisar a tradição do Ocidente nessa área. Ele divide os poetas em três categorias: os “inventores”, os “mestres” e os “diluidores”. Freud está na categoria dos inventores? Sim, porque inventou o sistema. Ao mesmo tempo, foi mestre, porque teve uma vida longa e fecunda e pôde produzir já dentro do modelo que inventou. E, de certo modo, foi também diluidor, pois uma parte de sua obra é a divulgação de seus inventos.
Quanto aos analistas que vieram depois, alguns são inventores, e outros são mestres. Mas a maioria, é claro, só aplica esse saber. Uma psicanalista como Melanie Klein (1882-1960) estaria na categoria dos inventores, especialmente por seu trabalho com crianças e pelos desdobramentos dessa experiência na análise de pacientes psicóticos. Melanie Klein se tornou importante no movimento psicanalítico pela revisão de conceitos-chaves da teoria freudiana e pelos conflitos que suas teorias suscitaram com Anna Freud (1895-1982), filha e seguidora ortodoxa de Sigmund Freud.
Outro inventor seria Karl Abraham (1887-1925), que, junto com Carl Jung (1875-1961), trouxe para a teoria freudiana a influência do tratamento das psicoses. Seus trabalhos associaram a teoria da sexualidade infantil à origem e compreensão da melancolia, da mania e da demência precoce. A originalidade de Abraham renderia frutos nos estudos desenvolvidos por Melanie Klein e seus seguidores.*
Sándor Ferenczi (1873-1933), psiquiatra húngaro, tornou-se psicanalista e discípulo brilhante de Freud e foi inovador na técnica, indo muito além das regras ortodoxas. Wilfred Bion (1897-1979), Donald Winnicott (1896-1971) e Jacques Lacan (1901-81) são considerados, cada um a seu modo, e segundo a tradição cultural e científica de seus respectivos países (os dois primeiros são ingleses; o último, francês), grandes mestres da psicanálise contemporânea. A influência deles continua bastante viva nos meios psicanalíticos e também no cenário cultural, acadêmico e científico do Ocidente.
Recapitulando, então: na época em que ainda trabalhava como médico, Freud inventou a psicanálise ao tentar resolver um problema que ele supunha relacionado à neurologia, qual seja, a causa dos sintomas da neurose – mais especificamente, da neurose denominada histeria. O método que criou para fazer o diagnóstico e encontrar a causa e a forma de tratamento dos pacientes histéricos acabou distanciando-o do saber médico, positivo, empírico, para levá-lo a inaugurar uma nova área de conhecimento, que trabalha com um saber simbólico.
Ele fez esse percurso e construiu o conhecimento psicanalítico graças a sua teoria do inconsciente e à descoberta da importância da sexualidade infantil na formação da mente. Era a ideia de que as experiências corporais vividas pela criança, associadas às sensações de prazer e dor, alegria e pesar, alívio e sofrimento, vão configurando uma clivagem entre inconsciente e consciente.
Freud deslocou para o corpo da criança e as primeiras vivências libidinais a noção (cultivada pela medicina de seu tempo) de que a cada sintoma neurótico correspondia uma parte do cérebro com problema de funcionamento. Aquele corpo, Freud percebeu, desenvolve uma simbologia própria e progressiva, que dura o tempo de vida de uma pessoa. Como uma narrativa, ela vai sendo marcada por sua experiência, sua arte, sua religião, seu contato físico e afetivo com os outros, e só se encerra com a morte. E a disciplina que se ocupa dessa narrativa não é mais médica. Ela está relacionada não mais à história biológica do sujeito, e sim a sua história simbólica, cujo suporte é o corpo e cuja origem é, sem dúvida, biológica.
Freud conseguiu ligar essas duas naturezas fundamentais do sujeito: a material ou corporal, que está na origem do que virá a ser sua mente e sua personalidade, e a que está na base de sua interação com a cultura e o grupo social. É nesse sentido que Freud se mostra um inventor. Ele reorganizou de tal maneira a relação entre a mente e o corpo do indivíduo que acabou criando uma nova área de conhecimento.
Claro que se pode dizer que há precursores na teoria do inconsciente, bem como na teoria do instinto, de que são exemplos os filósofos oitocentistas Schopenhauer e Nietzsche, para citar os pensadores mais conhecidos. Mas eles são precursores “criados” por Freud, ao ter organizado sua própria obra, hoje clássica. Na realidade, ao ter inventado essa relação nova entre mente e corpo, ao ter feito a ligação entre a cultura e a origem do indivíduo, Freud criou seus precursores. E só a invenção e a reinvenção permanente desse conhecimento pelos mestres (na acepção de Pound), seus discípulos e criadores de novas linguagens, poderão assegurar o futuro da psicanálise.
_______________________________________________________________
› A ideia do autor que “cria” seus precursores – já que o surgimento de sua obra altera a percepção não só do futuro, mas também do passado – está no ensaio “Kafka e Seus Precursores” (1952), de Jorge Luis Borges, em Outras Inquisições, v. 2 das Obras Completas (São Paulo: Globo, 1998).
Fonte:
OLIVEIRA LIMA, L T. Freud. Capítulo 7: “Freud e o futuro”. São Paulo: Publifolha, Folha Explica, 2001.
Luiz Tenório Oliveira Lima é médico psiquiatra, psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP/IPA. Professor do Instituto Durval Marcondes da SBPSP.
Fotografia: Sigmund Freud por Max Halberstadt, 1921 (Fonte: Wikipedia)
As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.