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BBC News Mundo
30 de outubro de 2020
Comentários: Maria Thereza de Barros França[1]
A matéria Geração Digital: por que pela primeira vez, filhos têm QI inferior ao dos pais? (ouça aqui) apresenta uma entrevista realizada com o neurocientista francês Michel Desmurget, autor do best-seller de título provocativo, “A Fábrica de Cretinos Digitais”. Nela o autor (re)afirma o efeito prejudicial sobre o desenvolvimento neuropsicológico de crianças e jovens, pela exposição precoce e excessiva aos dispositivos eletrônicos.
Do título, inicialmente destacou-se para mim a questão do aferimento de inteligência por testes de QI. Estes, quando mal aplicados, mal interpretados ou mesmo descontextualizados, podem levar a resultados desastrosos.
Lisondo[2] relata que no início da sua carreira, trabalhando como orientadora educacional, avaliou uma garotinha de 6 anos com diagnóstico de deficiência mental. No subteste do WISC sobre analogias, surpreendeu-se com a reação da menina à pergunta sobre a semelhança entre a banana e a maçã. Embora não tivesse dito nada, em resposta projetou a língua para fora e lambeu seus lábios com muito gosto, demonstrando, com o gesto, um conhecimento, no entanto não pontuado!
Outro aspecto que considerei: será que em vista da revolução digital a aferição de QI necessitaria uma revisão, em função de novas – ou diferentes habilidades que possam se desenvolver? Lembro-me de uma criança de 2 anos em frente à TV, passando o dedinho na tela, como se fosse um celular ou um i-Pad. Que mudanças na forma de pensar poderão surgir?
O próprio autor faz a ressalva de que o teste de QI é revisto de tempos em tempos e sofre interferência de fatores socioeconômicos. Entretanto, afirma que, mesmo em países como Noruega, Dinamarca e Finlândia, observa-se um fenômeno importante: o “efeito Flynn” – cujo nome remete ao psicólogo americano, autor do estudo que demonstrou que de geração em geração, havia um aumento no QI aferido – vem diminuindo.
E quais seriam as causas? Segundo ele haveria diversos fatores interferindo, sem que possamos dimensionar qual a participação de cada um deles, mas destaca a importância da exposição às telas.
De fato, notamos como hoje desde muito cedo são oferecidos às crianças os aparelhos eletrônicos. Pude acompanhar o caso de uma criança com grande prejuízo de desenvolvimento, que por longos períodos era colocada sentada sozinha diante de uma TV – como se esta fosse sua babá… E outra que chegou para atendimento com sinais de autismo, cujos pais desde muito cedo a presentearam com um i-Pad, pois equivocadamente acreditavam que isso a ajudaria no seu desenvolvimento.
Segundo dados mais recentes do Center for Desease Control and Prevention dos Estados Unidos, a prevalência[3] de casos de autismo dobrou nos últimos dez anos (2010-2020).
As causas de autismo são múltiplas. No entanto considera-se que um dos fatores que contribui para o aumento desse diagnóstico seria exatamente a exposição digital, ocorrendo em detrimento de vínculos afetivos significativos.
O autor chama a atenção para a importância de informar os pais sobre os riscos aos quais expõem seus filhos quando lhes oferecem dispositivos digitais. Sugere que as crianças sejam esclarecidas a respeito, pois acredita que dessa forma elas mesmas colaborariam para um uso mais adequado das telas – considerando-se que elas vieram para ficar e que evidentemente nos oferecem também oportunidades positivas.
O que teria sido de nós sem as telas para trabalho remoto após o advento da pandemia? Embora como psicanalistas saibamos das restrições e perdas que envolvem o atendimento psicanalítico on-line, o recurso foi valioso.
Evidentemente a questão não reside nas telas em si, pois o uso delas dentro de um projeto educativo pode ser muito proveitoso. O autor chama a atenção para o uso que se faz delas, em especial o recreativo, que é o que considera mais pernicioso.
Com o advento da pandemia do coronavírus e as aulas on-line, o apelo para as crianças do uso de computadores para jogos eletrônicos, foi um enorme desafio. Fora, a vida ameaçada, dentro dos lares níveis altos de tensão, pais trabalhando de casa, aulas maçantes, a falta do convívio com os amigos. Frente a tantas adversidades, nada como recorrer à “orgia digital”, nos termos do autor, estimulada pelos fortes interesses econômicos envolvidos.
Cheguei a ver crianças que reagiam à retirada das telas com verdadeiras crises de abstinência.
Desmurget explica o que se passa com o desenvolvimento cerebral infantil frente ao uso de telas. Compara o cérebro a uma massa de modelar que no início é úmida e macia e fácil de moldar, mas que com o passar do tempo seca e endurece. Destaca que não se trata de um órgão estável e que suas características finais dependem das nossas experiências. Ele se refere à plasticidade cerebral e a outros conhecimentos que temos hoje a respeito, por exemplo, das janelas de desenvolvimento e das podas neuronais.
Cunha[4] partilha do ponto de vista sobre a importância das experiências na constituição da arquitetura e do funcionamento cerebral, substrato para o desenvolvimento mental, a partir das relações afetivas do bebê com sua mãe. Os afetos positivos reforçam as comunicações sinápticas; já as experiências com afetos negativos diminuem a densidade sináptica e o tamanho dos neurônios. Ou seja, são as experiências emocionais primitivas moldando o desenvolvimento do Sistema Nervoso Central.
A partir do vínculo com a mãe, o bebê se desenvolve, tornando-se um indivíduo, tendo uma identidade e interiorizando um objeto pensante que é reativado diante de novas experiências.
Desmurget defende enfaticamente que os nativos digitais, quanto mais cedo expostos às telas, correm o risco de maiores danos ao cérebro por um atraso na maturação anatômica e funcional de várias redes cognitivas relacionadas à linguagem e à atenção. Afirma que quanto maior o uso de televisão e videogame, menor o QI e o desenvolvimento cognitivo, pois os principais alicerces da nossa inteligência são afetados, a saber, linguagem, concentração, memória e cultura, tendo como consequência o prejuízo acadêmico.
A superestimulação da atenção, prejudicando concentração, aprendizagem e favorecendo a impulsividade, estaria ligada ao enorme número de pacientes que hoje chegam até nós com o diagnóstico de TDAH?[5]
O mergulho nas águas profundas do mundo virtual frequentemente se acompanha de diminuição no espaço de convívio e trocas nas relações familiares, tão importantes para o desenvolvimento emocional. O autor sugere os limites que considera importantes respeitar de acordo com a idade da criança, ressaltando a ideia geral de que “quanto menos, melhor”.
Como psicanalista de crianças preocupa-me menos a questão de uma possível diminuição de QI – até pelos critérios de avaliação que podem ser variáveis – do que os prejuízos aos vínculos afetivos tão preciosos ao desenvolvimento infantil saudável.
[1] Psiquiatra e psicanalista. Membro efetivo e didata da SBPSP, psicanalista de crianças e adolescentes pela IPA, docente do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, ex-coordenadora do CINAPSIA, integrante da Secretaria de Psicanálise de Crianças e Adolescentes do Instituto Durval Marcondes, membro do Grupo Prisma de Psicanálise e Autismo.
[2] Alícia Beatriz Dorado de Lisondo. Avaliação psicanalítica dos estados mentais primitivos na constituição do psiquismo em infans e crianças: os pais na cena. In Constituição da Vida Psíquica. SBPSP, 2ª. edição, 2015, pp. 247-275.
[3] Número total de casos num determinado período.
[4] Iole Cunha. A revolução dos bebês. Aspectos de como as emoções esculpem o cérebro e geram os comportamentos no período pré e perinatal. Psicanalítica, Revista da SPRJ, 2 (1), 2001, pp. 102-128.
[5] Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.
Imagem: Baby by Working (Shutterstock n. 143073166)
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4 replies on “Geração Digital”
Obrigado por compartilhar tal reflexão!
Ótimo texto, além de bem escrito, muito esclarecedor. E uma pena as crianças não brincarem mais na rua e com os.amigos como era possivel
na nossa época. Parabéns Thereza, beijo
Texto muito elucidativo de como os meios digitais se não bem dosados e usados podem prejudicar e muito a mente em desenvolvimento.
E penso que estes fatos possam se reproduzir tb de maneira negativa entre adultos.
Parabéns Tereza,
Beijos
Muito informativo, li o segundo livro de Desmurget.
Muito impressionante a tabela sobre autismo.
Agradeço Maria Thereza França