Homens do nosso tempo
Home Blog artigos Homens do nosso tempoGustavo Gil Alarcão
Como psicanalista habituei-me a desconstruir generalizações e buscar as singularidades de cada um. Venho apreendendo ao longo dos anos que as generalizações tanto pressionam por normatizações individuais quanto podem servir de esconderijos. Freud chacoalhou o Ocidente quando evidenciou que não há nenhum caminho predeterminado na formação de uma pessoa porque ele desarticulou a equação entre a anatomia biológica, expressa em corpos e sexos de nascimento, e seus caminhos futuros.
Não há equação entre nascer masculino ou feminino e desempenhar esses ou aqueles papeis, buscar esses ou aqueles objetos de desejo. A psicanálise propõe que estejamos atentos às permanentes construções e desconstruções que vivemos marcadas pelas identificações e pelas faltas de identificação com as quais convivemos ao longo da vida, com especial importância para aquelas que nos receberam no mundo e cuidaram de nós enquanto bebês e crianças (foi da experiência que se construiu, se confirmou e continua a se confirmar essa hipótese).
Dito isso, entremos ao texto. Aceitei o convite para escrever um breve artigo sobre algumas características dos homens contemporâneos. Pai, relativamente jovem, psicanalista, psiquiatra, que posta fotos da família no Facebook, trabalha com adolescentes da Fundação Casa, convive e trabalha com muitas mulheres, casado etc. Partes da minha história pessoal que podem ter sido associadas às determinadas pressuposições que me colocariam em condições favoráveis de escrever sobre o tema proposto. O convite foi interessante porque partiu de uma equipe formada principalmente por mulheres e que, de certa forma, quase cem anos depois, recolocaria uma questão formulada pelo próprio Freud (1932), que já se indagava: “afinal, o que querem as mulheres?”. Hoje, em 2017, há mulheres perguntando: “afinal, o que querem os homens?”.
Não creio que se busque uma definição, o que seria tanto ingênuo quanto impossível. Mas essas questões indicam a existência de dúvidas e o questionamento acerca de identidades fixas e rígidas está posto. A maior variedade de possibilidades identificatórias é um traço de nossa época. Há condições para que as pessoas não tenham necessariamente que repetir passos e modelos. Essas possibilidades não baniram as tradicionais formas de existir, mas as ampliaram. Basta sair às ruas da maioria das cidades, para não dizer de todas, e observar a diversidade.
A diversidade sempre existiu, mas as possibilidades de expressão variam conforme o momento histórico de cada sociedade. Os filmes A Garota Dinamarquesa (2015,) Carol (2015) e Shame (2011) nos mostram exemplos disso. No primeiro, um homem que deseja se tornar uma mulher enfrenta as questões de seu tempo, os anos 1920-30. Em Carol temos um romance entre duas mulheres nos anos 1950 e Shame evidencia a vida de um homem contemporâneo cuja vida sexual compulsiva escondia uma rotina apática e entediante.
Os homens de hoje, mesmo querendo, não podem negar esses fatos. A liberdade de ser quem se é convoca a todos. Para alguns, existem possibilidades para que as escolhas feitas ao longo da vida (relembrando que somos atravessados pelo inconsciente) evoquem maior responsabilidade pessoal no sentido de se engajar consigo mesmo (se as imposições diminuíram, posso escolher mais). Para outros, a liberdade será assustadora e evocará defesas.
O mundo infelizmente ainda é muito hostil e bárbaro (vide o terrorismo, a violência policial, racismos e crimes contra minorias) e a liberdade que descrevo não pode ser exercida plenamente por muitas pessoas. As reações de intolerância daqueles que se sentem perturbados, literalmente perturbados, pela própria liberdade também estão explícitas. A liberdade do outro pode ser atacada com a violência. Os efeitos perturbadores da liberdade em si não podem ser banidos, podem ser negados ou deslocados. Provocarão sintomas desde o apego inseparável aos temas que tanto atacam (vide alguns políticos por aí, que falam mais de homossexualidade do que qualquer homossexual), ou gerando sintomas, dos quais a passagem aos atos –violência- tem sido o mais comum, havendo vários outros: as compulsões, o tédio, os pânicos e paranoias, etc.
Diante da possibilidade de sair do armário, cada um tem a efetiva possibilidade de assumir suas escolhas pensando em seus significados. Não podemos lidar sem problematização com a questão dos gêneros, tão debatida atualmente, afirmando que homens e mulheres não nascem prontos, constroem-se. Nesse sentido, se tomarmos como exemplo, para ficarmos no texto, pessoas do sexo masculino que se construíram como homens observaremos uma grande diversidade de vidas. Alguns mantiveram muito conservadas características possivelmente identificadas com as dos homens mais tradicionais de outras épocas. Ligados aos valores tradicionalmente veiculados como normas, apegam-se geralmente à moral religiosa, à família patriarcal e ao poder. Há homens que romperam radicalmente com valores tradicionais e adquiriram vidas próprias. Assistam Laerte-se (2017), De Gravata e Unha Vermelha (2014). Há vários outros: gays, homens casados, homossexuais que constroem famílias (por incrível que pareça, tradicionais), os solteiros convictos, homens que se casam com mulheres, homens que têm filhos; os que têm filhos e não se casam; os que não saem da casa dos pais; os que mudam de corpo; os que adquirem corpo; os que fogem e abandonam filhos etc. A relativização aqui não é estratégia para evitar o debate, mas é o seu argumento principal. Não se pode imaginar que determinada maneira de viver se imponha sobre as demais.
Voltando ao convite e imaginando os elementos da minha vida que possam ter sido levados em conta como representativos de certo grupo de homens, penso na paternidade e no casamento. Como um homem desse tempo e com as características do ambiente onde nasci e cresci, experimentei um caminho aberto para realizar minhas escolhas (aberto não significa fácil). Na medida em que pude me dar conta do que significava estar vivo e ter consciência de nossa breve e única experiência de existir, angustiei-me e me pus a pensar (análises pessoais foram fundamentais, porque nossa mente é engenhosa em criar subterfúgios e fugas). Fui questionar meus desejos e encontrei meu desejo de ser pai, casar-me e viver em família.
Convivo com vários amigos que fizeram escolhas parecidas e com muitos que não fizeram (tenho sorte!). Entre todos, percebo que são, em geral, homens menos assustados com os seus sentimentos e com sentimentos dos outros. Quase todos repudiam a violência como modo de se relacionar. A maioria se esforça para conviver com as diferenças. Praticamente todos quiseram se tornar independentes de suas famílias, o que se traduz em ter trabalho e ganhar dinheiro – nem todos levaram em conta outros aspectos do que chamam maturidade. Alguns vivem para se entreter e evitam qualquer conflito ou assunto mais sério. Alguns desejam profundidade em suas vivências. Todos estão conectados na rapidez, na tecnologia e na internet. A lista poderia seguir, mas é suficiente.
Tentando ajudar na questão sobre o que querem os homens, me lembro de um filme. Em A vida é Bela (1997), Roberto Begnini e seu personagem Guido encarnam o que penso poder representar um ideal para alguns homens desse tempo: nos horrores da guerra e apaixonado por sua principessa é levado para um campo de concentração com seu filho. Amor, coragem, paciência e criatividade o ajudam a salvar o filho, mas não evitam sua própria morte. Guido tinha um filho e uma mulher, mas poderia não ter filhos e amar um homem. Ainda aposto no amor e no vínculo entre as pessoas como desejo de muitos, o que não exclui a legitimidade de outros amores e vínculos, como o que se observa no filme Her (2013), quando o protagonista se apaixona por um programa de computador (certo que sua angústia tem matizes diferentes), mas se opõe aos vários exemplos de mentes tirânicas que fazem do outro objeto inanimado de sua satisfação.
Gustavo Gil Alarcão, membro filiado ao Instituto de Psicanálise SBPSP, psiquiatra Colaborador do Serviço de Psiquiatria IPQ HC FMUSP e Doutorando Departamento de Medicina Preventiva FMUSP.