Herdeiros do suicídio
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Começa em 21/08, o II Simpósio Bienal SBPSP – Fronteiras da Psicanálise: a clínica em movimento, trazendo quatro plenárias e quinze mesas que visam o diálogo interdisciplinar e dentro da própria Psicanálise, com foco nas questões do mundo atual e da clínica contemporânea, como o traumático da pandemia, violência doméstica, faces da depressão na infância, relações entre fenomenologia e Psicanálise.
No sábado 22/8, dentro do Eixo 1: A clínica em movimento, acontece a Mesa Herdeiros do suicídio: sobre aqueles que ficam, com a participação de Maria Júlia Kovács (IP-USP) e Cintia Buschinelli (SBPSP), sob a coordenação de Leda Spessoto (SBPSP).
No sábado 29/8, como parte do Eixo 2: Psicanálise: diálogo nas fronteiras, será realizada a Mesa: Cidade em movimento: fronteiras e travessias, com Paula Rochlitz Quintão (FAU-USP) e Tiago Porto (SBPSP), sob a coordenação de Rodrigo Lage Leite (SBPSP).
Confira a seguir os resumos das apresentações de Cíntia Buschinelli, Tiago Porto e Paula Rochlitz Quintão. Para acessar a programação completa do II Simpósio Bienal SBPSP, clique aqui.
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*Cíntia Buschinelli
Inicio estas reflexões a partir de um poema escrito por John Donne, poeta inglês do século XVIII: “Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de seu amigos ou o seu próprio. A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte do gênero humano. Por isso, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.”.
Cada morte, mesmo aquela de alguém que não conhecemos, leva uma parte de nós, esclarece o poeta. O que dizer da morte auto infligida por um ser humano não só próximo, mas alguém que contribuiu definitivamente para nossa existência, e que por desejo próprio, se é que se pode falar em desejo nessa circunstância, desiste da vida?
Reconheço que as palavras até aqui utilizadas não traduzem a força do fenômeno que desejo discutir. Quando faltam as palavras, há algo que nossa compreensão ainda não atingiu. Ao escrevê-las, parece que são diminutas, superficiais, pedagógicas e não trazem à tona as emoções muitas vezes ambivalentes que tal tema possui. Mas, vamos adiante, com atenção redobrada, para sentir se elas, as palavras, conseguem tomar corpo.
“O que se passa com aquele que viveu a experiência da perda de alguém por suicídio?” é a pergunta que norteará nossas reflexões.
*Cíntia Buschinelli é membro associado da SBPSP.
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*Tiago Porto
Em evento trágico recente, que culminou com a morte de George Floyd, foi explicitamente exposta a violência de uma sociedade fortemente marcada pelo racismo. Este evento desencadeou globalmente uma forte onda de protestos antirracistas, justamente em uma época onde toda a humanidade percebe sua vulnerabilidade ao ser tomada por uma pandemia. Em nosso país eventos como aquele acontecem diariamente há décadas, com evidente normalização da violência por toda nossa sociedade. O racismo é uma estrutura de poder que se apresenta por diversas formas. Além de sua concretude econômica e política, o racismo é um discurso de poder que se apresenta como uma ideologia, a qual introjetamos, fazendo marcas profundas em nossa subjetividade. Esta introjeção encontra campo fértil em um sujeito pronto a eleger um corpo abjeto que o afaste de sua própria vulnerabilidade. Erguemos, portanto, fronteiras subjetivas de difícil transposição, onde o outro toma forma de inimigo, que não só deve ser excluído como destruído. Para nós nos mantermos em uma ilusão de uma identidade coesa e não vulnerável, destinamos ativamente uma série de corpos para a abjeção. A psicanálise pode se apresentar como uma ferramenta útil para a travessia destas fronteiras e para a descolonização das subjetividades, desde que o analista se disponha a escutar estes corpos excluídos e tenha coragem para sustentar a provocação de seus referenciais epistêmicos advinda desta escuta.
*Tiago Porto é médico pela Faculdade de Medicina da USP, membro associado da SBPSP e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
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*Paula Rochlitz Quintão
Em tempos de pandemia faz-se necessário falar sobre os mais vulneráveis, aqueles que não apenas perderam o emprego, mas os que nem sequer têm onde fazer quarentena: as “Pessoas em Situação de Rua”.
A existência de pessoas que moram nas ruas é um fenômeno global. Embora com características diversas, é presente em todas as metrópoles mundiais, mesmo em países desenvolvidos. Na pandemia de 2020, como era de esperar, este número cresceu em todo o mundo. Ainda não há dados concretos sobre o número global, mas dados parciais de várias cidades que têm incluído esta população no seu cenário presente apontam para essa tendência.
Trata-se de uma população heterogênea, como têm mostrado os Censos realizados na cidade de São Paulo desde 2000, que quantificaram e traçaram o perfil geral desta população. Para esta, as políticas públicas apresentadas têm como intenção final a retirada destes indivíduos do espaço urbano.
Mas a análise do que chamamos de maneira generalizada de “população em situação de rua” mostra que há pessoas que desejam sair dessa situação – condição, portanto, circunstancial, – e outras que continuam / continuarão a habitar as ruas por motivos variados – condição, portanto, permanente. Uma variável importante refere-se ao tempo de rua, uma vez que a permanência na rua altera o comportamento das pessoas, suas percepções, e cria um tipo de sociabilização que torna a saída das ruas cada vez mais difícil[2]. Dados do Censo (2009) mostram que 25% da população mora nas ruas há menos de 1 ano. Por outra parte, 25% permanece nas ruas há mais de 10 anos[3] – ou seja, quanto maior o tempo de rua, mais improvável as possibilidades de saída desta.
As mesmas políticas públicas que definem como morador de rua aquele que “por contingência temporária ou permanente, pernoita em logradouros públicos, (…)”, parecem não contemplar esta parcela que estará sempre nessa situação – seja por impossibilidade de saída desta condição, seja por permanência prolongada, por resistência ou mesmo por renovação do contingente (no sentido de que, mesmo com a saída daquele indivíduo, outro entrará no seu lugar). Haverá, portanto, continuadamente, uma parcela flutuante que, efetivamente, habitará as ruas.
As estruturas urbanísticas voltadas a esse grupo são escassas, pouco eficazes e parecem partir do pressuposto de que há um desejo em todos moradores de deixar de morar nas ruas. Espera-se uma solução definitiva, simples (e simplista): prevalece a ideia de que este fenômeno tem causas exclusiva ou simplesmente concretas (pandemia, perda de emprego, de casa, ausência de vínculos familiares, desigualdade social, fragilidades psíquicas, drogas, entre outros), que poderiam ser resolvidas com ações pontuais: provendo a casa, o emprego, ou reestabelecendo os laços familiares, por exemplo, retiraríamos esses indivíduos da rua e, portanto, em teoria, não haveria mais moradores de rua no cenário das nossas cidades. Esta noção é, no entanto, equivocada.
Se, então, para uma parte dessa população, a resposta adequada seria a oferta aos meios que proporcionem sua saída das ruas – e, neste caso, o albergamento e outros centros de apoio e acolhida aparecem como possibilidades – o grande e novo desafio diz respeito aos que continuarão a viver nas ruas. Soluções urbanas homogeneizantes resolvem apenas parcialmente o problema, pois desprezam o cerne da problemática: a complexidade que é inerente à natureza da vida humana, principalmente nos grandes centros urbanos. Se há possibilidade de outras intervenções na contemporaneidade, é preciso aceitar trabalhar com esta contingência.
Partindo de um ponto de vista concreto – da cidade como território ocupado / espaço urbano construído, em contraponto ao discurso da subjetividade, – a ideia seria abrir a discussão para as fronteiras, não do psíquico, mas do espaço propriamente dito: fronteiras do espaço físico ocupado pelo sujeito, e os fluxos e deslocamentos desta população, que tem uma lógica de ser, e precisa ser analisada para que se possa, somente então, se propor estratégias de melhoria, retirada, ou inclusão destes indivíduos no cenário urbano.
Projetar para a população de rua inicia-se, portanto, pelo estudo de sua inserção física no tecido urbano – sua localização – e, por fim, do seu espaço imediato, seu entorno, seja ele na rua ou no projeto de seu quarto dentro do abrigo, albergue ou afins – o lugar (lugar). Passa também por uma análise objetiva, quantitativa, de dados estatísticos (mapas, dados, Censos) entendidos como complemento aos saberes a respeito da subjetividade, do desejo do sujeito.
No presente trabalho, analisaremos a movimentação da população de rua por duas variáveis que são inerentes a sua existência: Fluxos (movimentos) e Fronteiras (limites).
O diálogo entre os campos da Arquitetura e do Urbanismo e o da Psicanálise se presta a demonstrar que essas não são falas excludentes nem opostas, mas sim complementares, sem as quais um fenômeno tão complexo como o “morar na rua”, não poderá ser contemplado.
[1] Derivado da dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da autora: “Morar na rua: há projeto possível?”, com orientação de Prof. Dr. Carlos Roberto Zibel Costa, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAUUSP, em 2012.
[2] FIPE, 2009/2010, arquivo 3, p.6.
[3] FIPE, 2009/2010, arquivo 3, p.6.
*Paula Rochlitz Quintão é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP, pesquisadora sobre população de rua na área de urbanismo. Atua como arquiteta em escritório próprio.