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Isolamento social mobiliza atividade pensante e criativa em psicanalistas da SBPSP

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O atravessamento deste período de isolamento social tem mobilizado intensa atividade pensante e criativa em vários psicanalistas da SBPSP. O Blog de Psicanálise publica, hoje, trabalhos recebidos neste período e que compõem um painel das elaborações apresentadas por Ricardo Trapé Trinca, Helena Cunha Di Ciero, Suzzane Gallo, Vanessa Figueiredo Corrêa e Lecy Cabral para os desafios e angústias deste momento.


Visitações Enigmáticas no Tempo do Coronavírus

 

* Ricardo Trapé Trinca

Estamos isolados. É tarde da noite – ou cedo, ninguém sabe. A noite não passa. Lemos passagens do livro Paisagens do Medo, de Yi-Fu Tuan. Uma pequena luz tremeluz por sobre a mesa. É a luz de uma vela que ilumina precariamente nossos rostos e o restante da sala meio vazia. Parou de chover há pouco ou talvez há muito tempo, e ficamos sem luz, e a luz não tem previsão de voltar. A conversa é ela mesma uma tentativa de iluminar, mas envolvida por esse breu.

a:Temos medo do escuro.
b: Do escuro? Não costumo ter. Adoro dormir no escuro, você sabe disso. Uhm… Você está falando de outra coisa?
a: Estou. Gostaria de saber qual estado de mente suporta o escuro. A psicanálise pensou algo sobre isso, você não acha?
b: Talvez tenha pensado mais sobre criar verdades. Alguns tipos de enlouquecimento são exatamente assim. Vide nossos atuais governantes, que criam verdades sem base alguma da realidade. Mas não devemos patologizá-los. Eles merecem responder por irresponsabilidade ou crime.
a: Você tem razão! E como parece fácil desprezar a realidade. Mas acho que é no escuro e a partir dele que produzimos certezas absolutas. Talvez por esse medo do escuro. Mas diria certezas, não verdades.
b: Viver é perigoso. Perigoso demais. Acho que suportar o escuro é caminhar na incerteza. Mas caminhamos rumo a quê? Rumo a algo? Não sei. Como diria Pascal, “nadamos em um meio termo vasto, sempre incertos e flutuantes, empurrados de um lado para outro. (…) Ardemos de desejo por encontrar uma plataforma firme e uma base última e permanente para sobre ela edificar uma torre…porém, os alicerces ruem e a terra se abre sobre o abismo” . Sempre achei essa passagem linda; verdadeira e poética.
a: É realmente muito linda e verdadeira. Mas caminhamos, sempre. Talvez rumo a algo, mas desconhecido. Uma coisa é ter uma necessidade imperiosa de criar uma certeza, sem dúvidas sobre ela, outra é poder tolerar, ter certa paciência… e esperar. A tarefa da psicanálise é menos revelar e nomear e mais poder garantir que incertezas, mistérios e o inacabado do pensamento possa continuar não só existindo, mas produzindo meias verdades necessárias para a saúde mental. Alguns elementos dispersos quando combinados podem iluminar algo até então desconhecido. Muitas vezes, o conhecimento vem disso, dessa combinação de elementos outrora dispersos. Mas o curioso é como permanecemos como espécie que sente ser necessário sair dessa condição, quando essa condição é fundamental.
b: Qual condição você se refere?
a: Bem, de falta de luz, mas mais radicalmente, da camarilha dos quatro .
b: Não sei sobre o que você fala.
a: Falo sobre a revolução cultural chinesa.
b: A antiga ou a atual?
c: Acho que as duas. Uma destituição para um vir a ser.
b: Deve ser novamente uma imagem figurada.
a: Sim. Mas gostaria de permanecer assim, fazendo analogias e figurações. Caminhando pela incerteza, se possível.
b: Ok, acho que dá para te suportar. Combina com a noite.
a: Obrigado. Você sempre é gentil, o que soa falso, às vezes. Embora saiba também que essa necessidade de suportar não seja em relação a mim. Espero que você se dê conta disso. Essa noite que não passa é quase insuportável. E se falo sobre isso é por pura necessidade.
b: Tudo bem, mas você há de convir que algumas personalidades também são mais claras do que outras. Você aqui está sendo obscuro. E pedante.
a: A tua intolerância – e a minha também, é verdade – em relação ao obscuro é o tema de nossa conversa. O que te açoita, o que te aflige que te faz ir para longe disso?
b: Não sei bem. Mas quando li no jornal que o vírus está matando pessoas também de minha faixa etária e sem histórico de doenças, e que cientistas não sabem ainda se teremos imunidade a esse vírus, mesmo se já tivermos sido contaminados… bom, me encho de insegurança… Mas acho que essa conversa não chegará a nada. Não sei se ficar inseguro levará a alguma coisa.
a: Nada! Essa é uma rica palavra. Ex nihilo nihil fit. Sabe o que significa?
b: Não sei latim.
a: É um provérbio escolástico. Significa: do nada nada vem.
b: Sim. Posso compreender.
a: Talvez não. Talvez não possa. Talvez dizer que dele nada vem signifique querer sair rapidamente correndo dele. Sair correndo desse escuro em que nos encontramos, imaginando justamente isso, que não virá nada. Quando falamos “nada”, apontamos para aquilo que não há, mas também tentamos bordear, mapear ou dar contornos para isso.
b: Pensei que fôssemos falar de psicanálise.
a: E estamos. A psicanálise é um método de investigação e de um progressivo aprendizado por meio das experiências humanas que apontam para uma condição humana fundamental. Acho, pessoalmente, que a psicanálise vislumbra que essa condição seja precária e negativa.
b: Qual condição que estamos tentando figurar? A da camarilha dos quatro?
a: Exatamente!
b: Isso parece uma fala vazia ou teórica demais.
a: Espero, então, que esse vazio possa te visitar; e visitando, deixar-lhe na fronteira entre incerteza e pensamentos.
b: Uma fronteira, nesse sentido, talvez seja uma imagem topológica. Não confunde ainda mais isso?
a: Pode ser. Mas preferiria que você e eu pudéssemos ter alguma experiência com isso. Estamos na incerteza nesse momento. O nada já bateu à nossa porta. Ele é a primeira figura que nos visita hoje. Ele visa o outro, ou melhor, as coisas, por meio das quais nós mesmos nos revelamos. Pelo nada as coisas surgem por meio de sua alteridade.
b: E existem outras figuras?
a: Sim! Outras três. Mas espero que você possa conhecê-las aos poucos.
b: Ok. Mas deixe que eu lhe fale algo. Estou aqui pensando que estamos todos doentes. Ou adoecendo. Enquanto estamos aqui sentados nessa conversa teórica, mas toda incerta, milhões de pessoas são contaminadas e outras milhares morrem nessa pandemia. Você não acha que precisamos realmente de iluminação? Ainda bem que você não é cientista. Os cientistas podem fazer cálculos e trazer segurança, iluminam nossa escuridão. Você não faz nada disso.
a: A história humana é essa. Uma história da fome, uma história da peste, uma história da guerra e de precariedade. Acabamos de ler isso tudo no livro de Yi-Fu Tuan! No entanto, quando fazemos da história uma história de seus vencedores, e esquecemos de nosso sofrimento, de nossa precariedade e insegurança, então ficamos distantes dessa experiência traumática que estamos vivendo agora. Que todos vivemos. Temos também cada vez menos recursos para lidar com essa experiência que, cá entre nós, nem mesmo consegue se tornar experiência. Os vitoriosos vão se tornando imaturos, pois não conseguem aprender com a experiência dos derrotados.
b: E qual seria?
a: Bom, o traumático é uma iminência de desastre. Mas de um desastre que já ocorreu. Não sabermos nem se ficaremos doentes e nem se iremos morrer; por fim, o que acontecerá conosco e com os outros. Não temos controle e previsão sobre o futuro, mas as dores podem estar em perturbações já ocorridas. O corpo se transformou em algo ameaçador, assim como todas as coisas, que podem potencialmente ser depositários do vírus. Estamos tentando dar conta disso agora, neste exato momento e em todos os outros dias dessa quarentena. Há uma revolução cultural em jogo, também com o modo como aprisionaremos nossos corpos. E não há como dar conta disso. Parece ficar girando em falso ou hipercatequizando uma proteção que já se rompeu. A experiência que poderíamos ter diz respeito a essa condição humana insegura e frágil, que não dá conta de muitas das coisas do mundo. Mas agora todos vivemos isso simultaneamente. Há algo, um vírus, que nos traumatiza, mas também que nos lança para uma proximidade incrível com todo mundo. E não só para com as pessoas, mas para com as coisas, para com os seres e para com o futuro. Isso só é possível pela nossa fragilidade.
b: Mas não precisamos nos defender? Você fala como se fosse apenas bom ser frágil. Ser frágil é também se posicionar como aquele que poderá ser vencido. E, sem história, você desaparece. A morte dos vencidos é sempre mais mortífera do que a morte dos vencedores, porque ela é um desaparecimento. É um desaparecimento radical.
a: Sem dúvida. E iremos desaparecer porque somos imensamente frágeis. Estamos com um vírus batendo à nossa porta que nos traz essa mensagem. É uma mensagem válida para todos, ricos e pobres. A nossa fragilidade clama por segurança. Clama por paternidade e clama por um lugar de morada que seja seguro. Talvez a civilização ganhe novamente essa guerra, mas ela vai sair às ruas para festejar? Vamos manter o estado de insegurança que nos aproxima ainda mais do outro ou iremos onipotentemente sentir que somos os reis do mundo? Filhos de Deus…
b: Você falou em paternidade? E quem está falando sobre pai agora? Seu pai não te liga há um mês! O meu já morreu.
a: Eu sei e continuo triste com isso. Mas quero dizer que nascemos órfãos. Essa é uma outra condição humana. A orfandade nos visita. Talvez a necessidade de ter um pai, ou melhor, de adotar um pai, esteja na base de nossa insegurança. É uma dor perceber como a estupidez caminha a passos largos diante dessa necessidade. Como, por exemplo, apoiar líderes políticos que pela força querem transmitir segurança. É uma necessidade de filiação, de adotar um pai. Certamente um pai com o qual se identifica. Parodiando aquela música famosa: “um pai pra chamar de seu… mesmo que seja eu…”.
b: Ainda bem que você não é meu pai… te acho meio pernóstico, às vezes… Iria brigar muito com você! Mas essa condição de ser órfão, talvez tenha relação com a camarilha dos quatro.
a: Sim! É uma visitação.
b: Visitação? Mas será que não estamos falando em desamparo? A psicanálise tem mais a falar disso do que da camarilha dos quatro.
a: Sem dúvida. E muito. Talvez, o desamparo seja um sentimento que aponta para esses registros humanos fundamentais. E Freud foi genial por pensar como a dimensão do desamparo poderia justamente ser o elemento por meio do qual se criaria laço social. Juntos podemos estar menos desamparados.
b: Estou aqui pensando também que os laços sociais dizem respeito às relações. Estar junto com, ser com alguém…ser com você agora e nessa conversa meio filosófica que continuo sem apreciar… talvez, também assim me aprecie menos… quer um vinho?
a: Quero mais um gole. Obrigado. Realmente. É uma dimensão de um acontecer junto, de uma intersubjetividade. Mas que aponta para a dimensão de solidão, que é nosso oposto, pois somos junto às coisas. Nascemos em solidão, órfãos e não temos nada. A solidão nos leva para junto dos outros, para um ser que é em relação. Outra figura que agora nos visita: a solidão fundamental. Ela lança toda a existência em proximidade profunda com todas as coisas, como disse Heidegger.
b: Bom, das quatro figuras da camarilha dos quatro, parece que apenas uma ainda não apareceu. Venha, velha senhora, junte-se a nós! Mas, será que chamá-los de “camarilhas” não seria um pouco ofensivo?
a: Sim, talvez… Elas conspiram uma revolução…mas se esquecem que de sua negatividade advém a positividade de seu oposto. Talvez, para cada figura negativa, sua contraparte positiva já esteja sendo criada. Mas vamos deixar a terceira nos visitar. Não é necessária nenhuma evocação e mais nenhuma provocação. Já temos três ilustres convidados essa noite. Não podemos simplesmente deixá-los rodeando essa mesa em que conversamos. Precisamos ter alguma experiência com eles, você não acha?
b: Mas para quê?
a: Bem, conhecer não é o mesmo que ser, não te parece?
b: Sim, pode ser, acho que faz algum sentido. Mas como é ser negatividade? Parece contraditório!
a: Você é sagaz. Mas não se entusiasme muito. Elas visitam para retirar, antes de oferecer algo. Seu golpe primeiro é pela destituição. Ser destituindo-se, antes de sentir alguma positividade…
b: Ainda bem que estamos em casa.
a: Sente-se segura em casa?
b: Sim! Bastante! Você não?
a: Esse anseio por casa e por uma casa forte me lembra do texto de Henri Bosco.
b: Lindo, não é? Era sobre uma cabana, e quando vinha a tempestade, uma forte tempestade, a cabana parecia agarrar-se ao fundo da terra, e embora o vento a forçasse, inclinasse, batesse e ameaçasse derrubá-la, a cabana permanecia segurando-se firme no solo, e naquele momento o narrador e a cabana pareciam indissociáveis. Eles resistiram até o fim. Acho que ele ainda disse: “A casa apertou-se contra mim, como uma loba, e por momentos senti o seu cheiro descer maternalmente até meu coração” .
a: “Fluctuat nec mergitur”, o mote do brasão das armas de Paris… significa: é sacudida pelas ondas, mas não afunda. Talvez, numa tradução mais livre: castigado pela tempestade, mas não submerso.
b: Tempestade, nesse caso, parece um trauma.
a: Será que esse anseio por uma cabana igual a essa não vem de nosso saber pré-concepcional de ser sem casa? Errantes? Instáveis e sempre estrangeiros?
b: Como assim?
a: Ameaçados pela força de uma natureza selvagem, criamos um ethos, com costumes, hábitos, rotinas, linguagem. A força da natureza que ameaça e a força de nossa própria natureza, disruptiva e instável. Ela ressurge de todos os lados com sua mensagem enigmática, uma mensagem que diz exatamente isso: somos estrangeiros, nascemos na natureza, somos selvagens, somos errantes e instáveis. Em oposição ao ethos, acho que há uma palavra que toca essa condição: desterro.
b: Sem terra.
a: Sim, mas evoca também o anseio por ter uma terra, ou casa, ou lugar. Talvez algo muito próximo da condição de orfandade.
b: Quer dizer, neste momento, estamos sendo novamente visitados pelo último convidado.
a: Sim. E, também e cada vez mais por uma necessidade de coisas, de lugar, de paternidade e de outros com os quais possamos viver junto. Estou vendo que nossos visitantes, o desterro, a orfandade, o nada e a solidão fundamental estão se movimentando mais… talvez queiram falar algo.

Neste momento, os quatro visitantes, que permaneciam de pé e circulavam em volta dos dois, resolvem sentar-se ao lado deles. Os visitantes permanecem calados, sóbrios, tomam uma taça de vinho, esticam seus pés, mas o clima é opressivo. O silêncio é total. E o desejo de que eles possam ir embora vai aumentando a cada instante. Há um clima de angústia no ar. Uma angústia que não se faz representar. É uma angústia de coisa alguma.

b: Quando eles irão embora?
a: Espero que logo. Estou com medo de morrer. Me sinto muito aflito.
b: Espero que o medo da morte traga a vida, traga para mais relevo a vida… E eles? Não falam nada? Não consigo ver o rosto que eles têm.
a: Acho que eles não têm rosto…
b: Nem se são velhos, jovens, mulher ou homem…
a: Eu também não consigo saber… o que eles querem de nós?
b: Não sei! Talvez não queiram nada…
a: Talvez seja o enigma de uma alteridade.
b: Deve ser a falta de luz!
a: Deve ser. E essa luz parece a cada vez mais fraca.
b: Vem aqui do meu lado, estou com medo de que você fique como eles…
a: Você não está falando comigo. Esse não sou eu.
b: O quê?
a: Você está falando com um dos visitantes. Eu sou esse outro aqui…
b: (silêncio) Estou confusa.
a: Acho que estamos nos tornando esses visitantes, porque eu também não sei mais quem é você!
b: Mas a minha vontade por estar perto só cresce. Sinto também falta de minha mãe e… das pessoas.
a: Das pessoas?
b: Sim. E estou tão preocupada com todos. A vida é muito difícil. Eu me sinto como os sem-teto. E me sinto cruel como nunca tinha me percebido antes.
a: Eu estou com tanto medo dessas rachaduras na parede. Precisamos de ajuda…
b: Não sei… não sei mais nada. Olha! Olha! Acho que eles foram embora!
a: Pode ser, mas a luz talvez não volte nunca mais.
b: E agora?
a: Não sei. Talvez comece a amanhecer, quem sabe. Sinto muita falta das pessoas, do mundo, também de beleza.
b: Pelo menos ainda podemos respirar! Pelo menos ainda podemos respirar… uma última coisa: se eles são uma camarilha, quem afinal eles influenciam? De que corte fazem parte?
a: Não sei se é verdade… ouvi falar que da corte de Godot .

Referências Bibliográficas:

1. Pascal, B. (1957/1670).
2. A Camarilha dos Quatro é a designação do grupo de quatro membros do partido comunista chinês responsável pela implementação da Revolução Cultural na China. São eles: Jiang Qing que foi esposa de Tsé-Tung, Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan (Wikipedia, 2019). Neste texto a referência é meramente alegórica e representa a destituição da visitação do Real a partir de suas quatro formas básicas, o desterro, a orfandade, o nada e a solidão.
3. Bosco, H. apud Bachelard, 1957/1989, p. 61.
4. Personagem de Samuel Beckett, livro homônimo.

* Ricardo Trapé Trinca é psicanalista, doutor em psicologia clínica pela USP, membro filiado da SBPSP e autor do livro “A Visitação do Real nos Fatos Clínicos Psicanalíticos” (Edusp).

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TUDO RAIA

“Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.”

Cecília Meirelles

*Helena Cunha Di Ciero

As notícias são assustadoras e a iminência de que algo terrível está para acontecer nos assombra.  Dizem que o pico está para chegar, vejo as curvas da pandemia em ascensão e me lembro da Noviça Rebelde subindo a montanha com seus sete enteados fugindo do nazismo. Ela que me acolheu em tantas tardes na infância. Acolhe, hoje, meu terror, quando olho a curva de infectados subindo e penso em Climbing the Mountain tocando de fundo, um horizonte azul se anunciando e a promessa de liberdade. Assim terminava o filme que eu adorava em pequena. Será que isso vem depois do pico da montanha? Do pico da doença? Haverá um horizonte azul?

Não sei, o gráfico sobe e enquanto ele sobe, meu coração pulsa. The Hills are alive with the sound of music, canta a Noviça na primeira cena do filme. As montanhas estão vivas: e eu também. Então, sigo em frente.

Confesso, porém, que abro os olhos já há algumas semanas e repetidamente sopra a canção em pensamento: “Dorme minha pequena, não vale a pena despertar”, cujo título, (enquanto escrevo me dou conta) é: “Acalanto para Helena”. Meu nome. Eis minha canção de acordar, meu autoacalanto. Então eu canto. Afinal eu canto porque o instante existe, assim dizia Cecília Meirelles. Inevitavelmente, desperto, o dia raiou. Nesse instante estou a salvo.

Independente do coronavírus, da Covid-19, doença causada pelo Sars-Cov-2. (palavras que vim conhecer há menos de dois meses, mas que hoje fazem parte do meu vocabulário com mais constância do que nunca) o dia teimoso insiste em raiar. Meus olhos se abriram, mesmo com medo.

As manhãs nos fazem entender o raiar do sol como uma promessa de esperança.  A doença teima em existir, assim como o sol. Marina Lima diria: “Se tudo cair, que tudo caia, pois, tudo raia”. Em “Sobre a Transitoriedade”, Freud nos traz a ideia dos ciclos da vida como sendo parte de sua beleza. Estamos num ciclo de pandemia, mas assim como passou o nazismo, as guerras, a ditadura, a peste negra, isto também vai passar.

Há algum tempo, conheci o artista japonês On Kawara cujo trabalho consistia em mandar, durante muitos anos, telegramas para os amigos e colecionadores com a frase: I am still alive.  Vi essa exposição alguns anos atrás e a força dessa frase me tocou profundamente. I am still alive.

EU AINDA ESTOU VIVO.

Still.

Ainda.

Ainda pode parecer pouco, mas é um lugar seguro nesse instante. Ainda, hoje, é território sagrado.

Caetano também cantou, enquanto exilado: I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo Feel the sound of music banging in my belly know that one day I must die I’m alive.

E em interpretação dos sonhos Freud coloca que a fantasia é o que nos faz tolerar a realidade e que o sonho existe para que o indivíduo consiga suportá-la. Seguirei cantando enquanto tiver voz. Seguirei procurando pelo sonho. Colocando melodia em gráfico de morte. Seguirei procurando pela pulsão de vida. Ainda que a morte bata na porta da minha casa.

Hoje não, Sr. Corona. Hoje, estou ocupada, hoje não posso te atender.

*Helena Cunha Di Ciero é psicanalista, membro associado da SBPSP, especialista em Psicologia Psicanalítica pela Universidade de São Paulo (USP).

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Reflexos do Processo Primário no Atendimento Online

* Suzanne Gallo

Fenômeno novo. Vejo reflexos pela casa toda. Reflexos que não sabia que existiam. Quando me dei conta disso, no meio de uma sessão de análise telefônica, demorei um pouco em uma coisa que nem sabia estar a ver…olha só! No quadro que está pendurado à minha frente, um pouco à minha direita, vejo o reflexo do final da minha rua. Mas como? De onde estou sentada não vejo isso, estaria até de costas para essa ponta da rua, se não existisse a parede atrás de mim. Mas o vidro do quadro me deixa ver o fim da rua e umas árvores que não conhecia deste ângulo. Essas árvores do reflexo são diferentes das que vejo pela janela. Nunca tinha reparado. Só agora, nestes dias em que o quarto da TV se transformou em meu consultório, conheci esse aspecto da rua e aquelas árvores. A TV é grande e preta. Vejo nela um vago reflexo de mim, meio lúgubre, lá no fundo da tela. Quando me vejo sentada mais ou menos, não muito bem composta, me ajeito no sofá, no meio da sessão.

Passo a me demorar nos reflexos durante as sessões. Eles me distraem. Passo, aos poucos, no transcorrer dos dias, a levá-los a sério. Penso que deve ser reflexo do confinamento. Uma maneira que meu cérebro encontrou de ampliar os limites das paredes. Cada quarto da casa é maior do que parece… Ao me deixar levar pelos reflexos, começo a notar também que tanto os pacientes quanto eu, ouvimos ruídos novos. Muitos dos meus pacientes comentam que escutam o som dos passarinhos. Quando está calor, a janela do quarto fica aberta. A rua está deserta. A árvore cheia de passarinhos cujo trinar vai até a mente dos pacientes junto com a voz da analista. Às vezes, é hora do panelaço na Vila Madalena, mas aqui no meu bairro não tem panelaço. O panelaço chega até a mente da analista junto à voz do analisando.

Continuo observando os reflexos. Na hora do lanche, o chão de cerâmica preta da cozinha reflete o céu muito azul e nuvens brancas. Como pode ser? O chão é preto! Assim mesmo, vejo o céu azul refletido nele. Volto para atender no quarto da TV.

O homem que atendo por FaceTime usa óculos. Aos poucos começo a reparar, refletidas na lente dos óculos dele, umas imagens que penso serem da tela do computador que está à frente dele. Ele está muito desesperado, falando de algo que considera trágico. Um pouco teatral, mas a coisa é séria mesmo. Fico aprisionada no relato até o momento em que me deixo levar pelo reflexo nas lentes de seus óculos. Falo algo que inclui a minha fantasia do que estou vendo na tela do meu iphone. O que vejo é o reflexo de um show de rock de uns caras de cabelos compridos indo de um lado para outro do palco. O paciente fica desarvorado, diz que na verdade as lentes dos óculos dele são diferentes para não dar reflexo, me mostra imediatamente que não está com outra tela ativa a não ser a da nossa sessão no iphone, faz um gesto e me mostra o notebook dele com a tampa abaixada bem na nossa frente. Hmmmm…sei, sei… Deixo passar, não tenho coragem de ir adiante no trabalho analítico, agora. Não gosto de trabalhar assim. Saudade do meu consultório de verdade. Será que fui invasiva? Será que o comentário foi prematuro? Mas eu já estava atenta a esse reflexo desde a sessão anterior… Sei lá… vamos juntando imagens, notando o processo primário da maneira estranha que temos neste pandemônio. Muitos demônios devem ter me feito reparar tanto nesses reflexos do inconsciente.

Gostaria de ter em casa meu volume do Freud 1911, com “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, para me escorar nele. Ficou lá no consultório. É o que temos para hoje…

* Suzanne Robell Gallo é psicanalista, membro associado da SBPSP e mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP.

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O Amor nos Tempos do Coronavírus

* Vanessa Corrêa

Hoje, me lembrei de quando eu tinha 12 anos: de um dia em que fui ligar para uma amiga da escola e tal foi a minha surpresa ao perceber que o telefone estava mudo. Perguntei para minha mãe o que tinha acontecido e ela disse que, provavelmente, a conta não tinha sido paga e haviam cortado o sinal do telefone.

Eu ouvia constantemente meus pais dizerem que era feio não pagar as contas e nunca nenhuma companhia tinha cortado nada em casa, então tive que pensar sozinha e pela primeira vez, percebi que minha mãe estava doente, havia meses que estava deprimida e meu pai não estava conseguindo cuidar de todas as coisas que precisava.

Foi quando entendi que eles não resolveriam tudo sempre, que as coisas que para mim pareciam óbvias (como ter as contas pagas) demandavam trabalho e ações; que em muitos momentos as pessoas responsáveis por tais ações poderiam estar indisponíveis. Mesmo que o dinheiro estivesse disponível, precisaria sempre das pessoas cuidando e cuidando. E que ter luz, água, comida, roupas, escola e poder me comunicar ao telefone não eram fatos naturais. Assim, consequentemente, eu também vislumbrava que em algum momento eu teria que cuidar das pessoas.

Hoje, ao me observar desdobrada entre atendimentos virtuais e a tarefa de administrar a matéria escolar para o meu filho de sete anos, preocupada com a saúde de todos ao meu redor e com medo das perdas possíveis, percebo que muitas das minhas contas também não estão sendo pagas: muito da gentileza e do amor disponível em mim não está chegando em quem deveria chegar e eu sinto muitíssimo por isso.

 

*Vanessa Figueiredo Corrêa é médica psiquiatra, membro filiado ao Instituto da SBPSP e membro do Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região (GEP Rio Preto e Região).

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Hoje é 20 de março de 2020

*Lecy Cabral

Ainda na penumbra do amanhecer, desperto com o ruído de um toc-toc na janela do meu quarto. Percebo o farfalhar das folhas.
O que será esse ruído?
Abro a janela e deparo-me com um lindo pica-pau com um penacho amarelo no alpendre da minha varanda.
Alegro-me ao vê-lo!
O visitante madrugador toca a janela com seu bico
Como a me chamar para a vida lá fora
Como a querer mostrar
Que a alegria ainda vive lá fora mesmo escondida em cantos para os quais nunca temos tempo de olhar…
Minha mente vagueia diante da beleza da majestade imponente com seu penacho amarelo.
Já é outono e o céu mostra-se com pinceladas de um suave azul pastel.
O vento já sopra mais forte e vejo as folhas caídas com tons esmaecidos de amarelo, castanho e vermelho.
Esse recorte de mundo que minha janela me dá,
Parece desenhado pelas mãos de um artista
O outono chegou!
Teremos, aos poucos noites mais longas e dias mais curtos.
Hoje é 20 de março de 2020
Estamos na quarentena
As noites mais longas?
Creio que os dias também serão mais longos…
Tempos de  solidão e incertezas.
Medo do não saber o que virá.
Medo do coronavírus,
Medo de perder os que amamos,
Medo da morte?
Estamos todos isolados.
Prisioneiros em nossas próprias casas.
Como se fôssemos ostras fechadas na concha.
Falta o contato…
Falta o toque, o abraço…
Falta o carinho da troca…
Hoje é 20 de março de 2020
A ruas desertas sem viva alma
Alguns ainda perambulam pelas ruas como almas penadas
Devastação!
Desamparo
Tempos difíceis chegam junto com o outono
Ainda ouço o toc-toc do pica-pau para alegrar um pouco esse momento.
A origem da palavra outono vem do latim autumnus, que significa amadurecer.
Almejamos que a mudança de estação traga humanidade e compaixão.
Que os braços da justiça e de solidariedade nos propicie o tempo da estação do amadurecimento.
E que de nossa intimidade possa surgir uma trama que propicie ao outro o calor que necessita para sobreviver.
Hoje é 20 de março de 2020
Antes do século XVI o outono representava a época das colheitas. Creio que para nós, hoje, representa o período do cultivo.
O cultivo da relações.
O cultivo dos afetos.
O cultivo do compartilhar.
O cultivo do olhar para as necessidades do outro.
Só o cultivo dessa trama pode nos oferecer a saúde física e mental.
Só o cultivo dos aspectos humanos pode propiciar o bem estar dos nossos irmãos no mundo.
Que de dentro de nossas casas sejamos cada um uma rica semente.
Que espera o tempo do crescimento para depois explodir em fruto!
Na mitologia grega – As Horas são as Deusas que representam as estações do ano e a divisão do tempo.
Estamos no Hemisfério Sul, hoje é outono.
No Hemisfério no Norte, hoje é Primavera.
Lá as flores desabrocham de alegria, mas os
corações sangram de dor.
Hoje é 20 de março de 2020
Desejamos que as flores da primavera,
do outro lado do mundo, desabrochem e que todos voltemos a sorrir sem medo.
Do lado de lá do mundo, do lado de cá…
Do lado de lá da janela, do lado de cá da nossa solidão…
Que os frutos do outono,
Do lado de cá do mundo, amadureçam, e nos tornem seres melhores.
Mais compreensivos.
Mais solidários.
Mais humanos.
Que essa força de vida una os povos em suas polaridades .
Apesar das diferentes estações: do germinar ao desabrochar.
Desabrochar para o amor e respeito ao outro e a si mesmo.
Germinar as sementes para um mundo mais compreensivo e de Paz!
Que consigamos ouvir sempre  o toc-toc do pica-pau em nossos corações.
Hoje é 20 de março de 2020

 

* Maria Aparecida Cabral (Lecy Cabral) é psicanalista, membro associado da SBPSP.

Imagem: Assessoria de Imprensa



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