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Lembrando Donald Meltzer

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“Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. É com esta frase que se inicia “Anna Karenina”, de Liev Tolstói, um dos grandes clássicos da literatura ocidental.

Ao receber o gentil convite das editoras desse Blog para escrever algumas linhas sobre minha experiência de análise com Donald Meltzer, ocorreu-me que a sentença do escritor russo se ajustava bem à descrição do sistema de formação psicanalítica institucionalizada. Com efeito, transcrito para esse campo, ela proporia que todas as análises didáticas se parecem pois percorrem um trajeto que se assemelha ao de uma procissão cujos pontos de partida e de chegada já estão inscritos em um percurso pré-estabelecido ao longo do qual cânticos ritualizados são entoados sempre do mesmo modo. Uma beata felicidade paira sobre os fiéis, irmãos filiados à mesma Ordem, satisfeitos por terem seguido à risca o catecismo prescrito.

Já a simples análise de  pacientes comuns, aqueles que batem à porta de nossos consultórios, cujos casos são apresentados em reuniões cientificas das quais resultam trabalhos levados à publicação em revistas e livros especializados, é de outra ordem.  Inscrevem-se na categoria de “opera aperta” que prossegue como uma linha quebrada, imprevisível, que transpira a inquietude do indefinido e do inconcluso. Tais análises “civis”, cada uma à sua maneira, contorna a placidez e o marasmo da felicidade.

Algum tempo após terminar minha análise didática, recebi uma bolsa de estudos para estudar Terapia Psicanalítica de Família, na Tavistock Clinic, em Londres. Lá me arrisquei a ser infeliz à minha própria maneira e, como mero paciente, procurei Donald Meltzer.  Falar sobre a própria análise é um exercício temerário já que os restos transferenciais e as lembranças encobridoras farão necessariamente parte do relato. Veja-se o que nos conta Phyllis Groskurth autora da biografia de Melanie Klein: após pesquisar persistentemente, ela conseguiu localizar Richard para entrevistá-lo. Ele é o menino das 93 sessões que compõem este livro único da história da psicanálise, que é “Narrativa da Análise de uma Criança”. Melanie Klein ali relata e comenta de forma detalhada o material clínico de cada sessão. À medida que o faz, vão emergindo da sua forma sistemática de trabalhar e de sua técnica rigorosa, as imagens e as relações que compõem o Édipo primitivo, na plenitude de sua violência e do consequente sentimento persecutório. A intensa e sofrida sintomatologia fóbica do garoto vai ganhando sentido para ela e para ele.

Phyllis, ao entrevistá-lo já adulto lhe pergunta o que recordava de sua análise; ele responde que tem uma lembrança viva do motorista do ônibus da pequena cidade onde a análise ocorrera.  As 500 páginas de sua agonia foram tragadas pelo oblívio. Por outro lado, é impossível para o paciente, ao recordar sua análise, deixar de falar de fatos, de experiências pontuais e significativas, sem correr o risco de conferir ao texto um caráter anedótico. Mas, uma vez aceito o convite, não há como não se expor.

Certamente a consequência mais perceptível para mim, da análise com Donald Meltzer, foi a mudança na minha forma de apreender a fala do paciente, que passou a ser escutada segundo uma imagética tridimensional. O modo de trabalhar de Meltzer é inteiramente correlato às suas teorias. Sua visão do aparelho psíquico e de sua forma de funcionar é sempre espacial. Para ele, a mente é um universo composto de objetos variados constantemente agindo uns sobre os outros, dialogando com o self, a eles se agregando ou dele se cindindo. Mas os objetos que lhe interessam são os “infantis”, imaturos no sentido psicanalítico, isto é, na forma que têm de aprender e lidar com a realidade interna e externa. O infantil vai manobrar incessantemente para dominar e parasitar a parte adulta do self e de suas relações de objeto. Seu intuito é eliminar a percepção da diferença de prerrogativas inerentes a cada um deles – infantil e adulto – que se presentificam quando se relacionam entre si. No curso da análise para descrever esse modo de agir do infantil, Meltzer se vale de um vocabulário próprio, algo irônico, porém extremamente preciso (“o bebê despeitado agora está querendo alimentar a mamãezinha com seu cocô-leite”) que acentua o caráter material e realista da relação, ao mesmo tempo que enfatiza a natureza do sentimento que a move e infiltra. O paciente se percebe descrito a partir da penetrância do infantil nas relações de objeto que estabelece (transferencialmente). Uma vez mais chamo a atenção para o caráter de “cena”: o paciente sente que sua mente se abre a si-próprio através da descrição feita por Meltzer a partir de um ponto de vista claramente explicitado que norteia a interpretação. Minha análise ficou marcada por esse olhar que “enxerga dentro e através” sem ser intrusivo, que escuta a voz até então inaudível.

No nosso primeiro encontro, quando combinávamos horários, honorários, férias etc, me disse que esperava que eu trouxesse sonhos. Como eu estava intoxicado pelo ambiente paulista que lançara um anátema sobre a “saturação” respondi (espero que análise tenha amainado minha arrogância!) que não cabia numa análise privilegiar nenhum material. “Muito bem, ele me respondeu; acontece que eu sou bom em sonho e se você quiser aproveitar o que eu tenho de melhor traga sonhos”. Não precisa dizer que uma semana após lá estava eu, para meu espanto, debitando sonhos de uma imensa riqueza que não só impulsionaram a análise, mas descortinaram a presença na minha mente de uma geografia particular que ele descrevia com paciência e agudeza.  É possível pensar que eu fora simplesmente sugestionado, ao modo do hipnotizado diante do hipnotizador. Não creio. Penso que foi sua atenção constante ao modo como o infantil se manifesta na transferência, a descrição detalhada de seu comportamento, o diálogo privilegiado com esse infantil através da parte adulta que me levou a comunicá-lo sob a forma onírica.

Vou citar um episódio no qual transparece essa dinâmica.

“Sonhei que estava sentado em uma cadeira de dentista e que dois homens me torturavam. Tiro então da cintura um revólver, levanto da cadeira e me retiro lentamente, dando as costas aos meus algozes”.

Eu já lhe falara da tortura vigente no Brasil e aguardava uma interpretação que de alguma maneira aludisse a uma vertente sadomasoquista de minha personalidade. Depois de um breve silêncio ele disse simplesmente: “Você foi covarde”. Perdi o fôlego. Sua fala, porém, nada tinha de crítico ou acusatório. Pelo contrário: era descritiva e sintetizava o sentimento que presidira a minha conduta no sonho. Para Meltzer, a perversão de caráter maligno provém da aliança da parte má do self com o objeto mau. Desse amálgama resulta uma entidade que captura o restante do self adulto e o manipula convencendo-o a agir seguindo os seus princípios: o mal é a meta; a maldade seu trunfo e sua satisfação. Para Meltzer, não se pode tergiversar na relação com este objeto: ele deve ser eliminado. Não estamos diante de algo estragado que possa ser reparado: ele é o próprio estragar. O que Meltzer fez então, ao adjetivar a minha conduta, foi apontar para o fato que eu deixara de enfrentar (afinal eu estava de posse de uma ferramenta que me habilitava a fazê-lo: o revólver) meu objeto interno destrutivo e sádico, lhe dera as costas e me afastara fazendo vista grossa à sua presença e à natureza de sua ação. O “você” de sua frase referia-se à parte adulta que ainda podia escutá-lo.

Fazia parte também do seu modo de trabalhar, “imitar” o jeito de falar dos objetos internos e os diálogos que estabeleciam entre si e/ou com o self (ele descreve esta técnica no seu artigo: Temperature and distance as technical dimension of interpretation, 1994[1]. Lembro-me de uma vez em que lhe disse que talvez não fizéssemos um determinado passeio porque minha mulher se queixara que iria sentir muito frio. Ele respondeu, imitando uma criancinha: “coitadinha da Regina, sente tanto frio, brrrr”. Esse tipo de interpretação costuma ser muito eficaz: neste caso ele aludia ao uso de Regina como suporte de uma parte infantil feminina minha que visava convencer a parte adulta a não enfrentar “intempéries” (internas e externas). A sua visão holística do funcionamento mental e do processo analítico o levava em suas interpretações a integrar e expandir o que já tinha sido “mapeado”. Uma ocasião em que eu trouxe algum material que ele deve ter considerado relevante pôs-se a falar, para minha surpresa, por um longo tempo. Era um apanhado do desenrolar de nossa análise até aquele ponto, de minha forma de caminhar e de sua percepção de minha personalidade. Ao terminar me disse: “I’ve been thinking on you” (estive pensando em você). Não se tratava de reasseguramento mas sim de um modo de me mostrar de que forma eu estava vivo em sua mente. O rigor de sua técnica não impedia que trabalhasse próximo do paciente, que fosse gentil e generoso o que o levava frequentemente a mandar lembranças à minha mulher (que ele não conhecia), a correr até a porta para me entregar um guarda-chuva no dia em que, terminada a sessão, caiu subitamente em Londres uma tempestade tropical, e a me dizer quando tratamos do valor dos honorários, que isso não seria impedimento para trabalharmos (era um critério que adotava com todos pacientes): eu pagaria aquilo que se adequasse às minhas finanças. Ao fim, quando falei de minha gratidão por seu trabalho ele disse: “Eu só fiz a colheita”, dando crédito às sementes plantadas pela análise anterior.

 

[1] Meltzer, D. Hann, A., (1994) Sincerity and Other Works: Collected Papers of Donald Meltzer (p. 374-386), Routledge. 

Luiz Meyer é médico. Especializou-se em psiquiatria na França e Suíça e fez seu doutorado na Inglaterra, na Tavistok Clinic, sobre terapia psicanalítica de família. Membro efetivo da SBPSP, professor de seu instituto e autor de “Família dinâmica e terapia – um abordagem psicanalítica (Casa do Psicólogo); Rumor na Escuta – ensaios de psicanálise (Ed. 34); Navegação Inquieta – ensaios de psicanalise (Ed. Blucher); Réu Confesso- poemas reunido (1968-2010) Ed. Ateliê; e Sujando o Ninho e outros poemas (Ed. Iluminuras).

Imagem: esboço dos cadernos de Paul Klee (Domínio Público) 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.    



Comentários

2 replies on “Lembrando Donald Meltzer”

Miriam Tawil disse:

Muito bom artigo, da vontade de conhecer melhor a obra de Donald Meltzer. Um privilégio ter tido esse analista!

Ligia Todescan Lessa Mattos disse:

Fico muito agradecida a você, Luiz, por ter se disposto a relatar sua análise com Meltzer. Sua exposição me fez pensar que a forma de Meltzer conduzir a análise é um sopro de vida na relação analista-paciente. Apesar das críticas que você sempre fez às análises didáticas, penso que, embora institucionalizadas, é importante o analista ver o membro em formação como um paciente comum, sem prazos, sem julgamentos. Ou seja, é importante que nós, analistas, façamos o esforço de não nos institucionalizarmos e mantermos nosso vértice psicanalítico.

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