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Memórias de Infância: um nó entre literatura e psicanálise

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* Cristiana Tiradentes Boaventura

Nas ciências humanas, há um extenso campo que se debruça sobre os usos da memória e o estudo de como ela se constitui. Na literatura, alguns escritores se dedicaram mais de perto a esse tema e fazem da sua obra um importante espaço para reflexão sobre a memória, o testemunho e a autobiografia, espaço que o campo psicanalítico também ocupa. Escrever, pensar, falar sobre nossas próprias memórias é debruçarmos sobre nós mesmos. E parece claro que alguns autores literários conseguiram chegar perto, de modo rico e profundo, dessas arquiteturas psíquicas.

Graciliano Ramos faz isso muito bem. Costura com rigor o narrador no seu presente, no seu passado. No final do primeiro capítulo de seu livro Infância, por exemplo, em que perseguido pela “impertinência” da lembrança de um conto, que a mãe proseava com insistência, ele tenta lidar com os nós da memória. O teor desse texto nos remete à representação de uma violência destruidora, vingativa, e surge como memória problemática, saturada de dilemas, que o narrador insiste em marcar num jogo entre esquecer e lembrar. Assistimos a um conflito do adulto entre a tentativa de afastamento da lembrança e o esforço de resgatá-la.

O leitor toma conhecimento da temática de sofrimento e violência que se esboça na história oral quando ela é resumida pelo narrador. O enredo é basicamente o seguinte: um menino é adotado por um padre que tinha uma amante. Para não se comprometer e não ter sua história revelada pelo rapaz, o padre lhe ensinou signos linguísticos distintos para designar algumas palavras, de forma que se o pequeno falasse algo ninguém o entenderia. Com o tempo, o padre e a amante começaram a maltratá-lo, certos de que não seriam delatados. Acontece que, um dia, o menino decidiu vingar-se e coloca fogo na casa, escapulindo, gritando versos na linguagem que havia aprendido com o padre. Seguem-se, então, comentários do narrador vinculados aos sentimentos de infância:

Não se mencionou o gênero dos maus tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. Acostumaram-me a isto muito cedo — e em consequência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos padecimentos, realizou feito notável. (RAMOS, 2009, p. 19)

É muito interessante observar como os versos da história, aos poucos, adquirem sentido e como o narrador atribuirá a eles um significado para o presente. O necessário é para o agora, que parece passar pela dificuldade em expor sentimentos ambivalentes, visto a insistência em esquecer, em evitar mostrar desejos que o envergonhavam no passado, em falar do tema violência. Mas, paradoxalmente, o narrador fixa-se nesses sentimentos e os expõe, apontando para uma construção narrativa corajosa em que vergonhas e constrangimentos de outros tempos se apresentam. De modo bidirecional, opera com a revisão desse passado:

Esta obra de arte popular até hoje se conservou inédita, creio eu. Foi uma dificuldade lembrar-me dela, porque a façanha do garoto me envergonhava talvez e precisei extingui-la. Ouvindo a modesta epopeia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para violência. Encolhido e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. (RAMOS, 2009, p. 19)

Essa revelação evidencia que o narrador não se propõe à construção de um passado limpo, ligado somente a sentimentos dignos e justos. A lembrança não vem sem sofrimento. E a relutância de lembrar ocorre porque é preciso admitir ali atitudes que para ele são condenáveis, principalmente a confissão de sua admiração pelo menino que age violentamente e do desejo de capacitar-se com a coragem e a ferocidade da personagem.

Esse pequeno exemplar da literatura oral serviu para uma reflexão sobre esse passado e para que agora possa se ver outro – ele não é mais aquele, há um caminho entre o menino e o adulto. Parece funcionar também como uma ferramenta de reterritorialização do presente, por onde o tom às vezes irônico alcançará caminho para lidar com o conceito de masculinidade daquela sociedade patriarcal em que cresceu.

A literatura, a narrativa ficcional, estaria funcionando aqui como mediadora entre a violência e o narrador. Ela interpõe-se entre os dois e serve como instrumento de elaboração. É pela narrativa que se dá a transformação. E ela cria o espaço devido para uma crítica da violência, crítica essa só possível pelo distanciamento do tempo, feita com uma escrita combativa àquela ordem social violenta.

Algumas construções discursivas foram necessárias no processo de reconstrução da história, como a fragmentação, a repetição e a resistência ao narrar, muito identificadas a situações de traumas, de modo que a interpretação do passado se aproxima do próprio processo de funcionamento da memória, com seus vazios e lacunas.

É ao escrever essa história, portanto, que Graciliano constrói para si um sentido entre esse conto e sua experiência, na medida em que criou uma relação interpretativa desse mundo do passado e o seu mundo como narrador-escritor. Esse movimento dialético possibilita a construção de uma “identidade narrativa” (RICOEUER). Afinal, para analisar o “homem psicanalítico” (HERMANN) muitas vezes é preciso acionar recursos da ficção literária. Nesse sentido, literatura e psicanálise se aproximam. E articulam experiências amalgamadas pela memória e pela narrativa.

Referências:

HERMANN, Fabio. A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

RAMOS, Graciliano. Infância.  44ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas, SP: Papirus, 1991.

Cristiana Tiradentes Boaventura é psicanalista, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela USP. É membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da SBPSP e vinculada ao Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC/USP).

 



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