No princípio é a dor: arte, experiência estética e psicanálise
Home Blog geral No princípio é a dor: arte, experiência estética e psicanáliseParte 1[1]
Foi com entusiasmo que li o livro de Gabriela Goldstein, psicanalista da Associação Psicanalítica Argentina (APA), adquirido por mim na livraria Ateneo em Buenos Aires, no ano da sua 1ª edição, 2005. Coincidentemente, este foi o mesmo ano em que foi publicada a 1ª edição do meu Arte, Dor. Inquietudes entre Estética e Psicanálise. Porém, mais do que apenas uma coincidência de datas, nos dois livros, a questão da experiência estética é central. E também é semelhante o modo como a arte é compreendida, começando pelo fato de ser considerada, nos dois livros, um campo de conhecimento, assim como é a medicina, a física, a química, a astronomia, a psicologia, a filosofia e a própria psicanálise. E, nessa medida, como qualquer campo de conhecimento, a arte possui uma especificidade que exige estudos, pesquisa e certa erudição para que se possa trabalhar com ela e a partir dela (Argan, 1988).
Entretanto, essa condição é ignorada na grande maioria dos escritos psicanalíticos nos quais uma obra de arte é objeto de comentários, figurando mais como ilustração dos textos, como matéria sem história e sem contexto, apenas como um suporte para a projeção de representações teórico-conceituais ou como tela para a livre associação pessoal do intérprete que mais revela a si mesmo do que a obra supostamente analisada. Mas, isso não acontece no livro de Gabriela Goldstein que me reservou outra surpresa, outra coincidência: a data da sua publicação em português coincide com a data da edição do Arte, Dor, em russo, lançado em Moscou, também em 2019. Ora, tão longe e tão perto, os dois livros despertaram o interesse de leitores diferentes, que se empenharam em traduzi-los, e com certeza A experiência estética encontrará, entre os leitores brasileiros, um reconhecimento semelhante ao recebido pelo Arte, Dor entre os russos, como tem sido expresso nas ocasiões em que os encontro nos seminários, aulas e supervisões que passei a ministrar, encontros em que as diferenças culturais não impedem a nossa recíproca comunicação. E creio que essa reciprocidade tem a ver com o fato de as artes, especialmente a música e a dança, fazerem parte da vida dos psicoterapeutas russos que tenho encontrado. E esse aspecto corresponde ao que deve ser a condição para todo aquele que deseja fazer alguma aproximação entre arte e psicanálise, quer dizer, é preciso ter experiência nos dois campos – no campo das artes, seja por engajamento em alguma prática como criador, seja por alta frequência em museus, galerias, salas de concerto e de espetáculos como espectador; e, no campo da psicanálise, seja como psicanalista, seja como analisando. Mas, não só isso. É preciso que essa frequentação esteja relacionada à pesquisa permanente nos dois campos, com acumulo de leituras e interlocução com seus pares. Nesse sentido, Gabriela Goldstein é uma intérprete privilegiada que cumpre esses requisitos, pois além de psicanalista, é arquiteta e pintora com exposição da sua belíssima obra, em várias cidades do mundo. Ora, para o psicanalista, se essa experiência de intensa frequentação do campo da arte não acontecer, a tendência será que o resultado do seu trabalho será superficial e discutível, evidenciando que as obras de arte referidas não passarão de signos que valem apenas por conferirem ao intérprete, seja ele quem for, uma distinção de classe, como bem analisaram Bourdieu e Darbel na pesquisa que norteou o livro L’amour de l’art (1966).
Posto isso, relembrando que Gabriela é pintora e psicanalista, a partir da leitura de A experiência estética, surgiu para mim a seguinte pergunta: o que a psicanalista poderia dizer a um artista sobre a psicanálise e o que a artista poderia dizer a um psicanalista sobre a arte?
Essa é uma pergunta em duas fases que interroga a reciprocidade entre o psicanalista e o artista. Mas, é uma pergunta que também implica como resposta, qualquer que ela seja, alguma reflexão sobre as especificidades da arte e da psicanálise em contato com a primeira. Tais reflexões são formadas por intermédio da própria experiência ou da frequentação que artista e psicanalista tiveram no campo da arte e no campo da psicanálise, campos de conhecimentos que suscitam discursos cujo destino é constituir o processo da chamada recepção estética que, por sua vez, determina a fortuna crítica das obras. E, nesse processo, a Psicanálise poderá se afirmar, ao lado de outras disciplinas, como uma perspectiva legítima para o conhecimento das artes. Mas, o que seria a arte?
Gabriela Goldstein responde gradualmente, considerando aspectos diferentes da arte como um processo, ao longo de cada um dos três capítulos que compõe o seu livro (2005/2019), nos quais o seu diálogo é sobretudo com escritos de Freud. No primeiro, a referência é ao relato de Freud sobre a sua experiência na Acrópole. No segundo, ao belo ensaio sobre a transitoriedade. E, no terceiro, ao estranho. E em cada um deles os temas analisados pela autora variam, mas é a memória o tema privilegiado, embora outros sejam trabalhados ao longo da narrativa – a temporalidade, o corpo e, sobretudo, a própria obra de arte – sempre articulados à questão da experiência estética. Não será possível discorrer sobre cada um deles neste breve comentário, mas, procurando ser fiel à autora, destacarei um tópico importante da sua reflexão, retomado por ela mesma em outro texto, mais recente, que diz respeito à arte propriamente dita.
Com efeito, diz a autora (Goldstein, 2020) – “Arte é memória. É memória incorporada na obra de maneira paradoxal. Ou seja, a arte convoca a memória que, em muitos casos, é objeto da própria arte. Pensar sobre essa questão, que articula as naturezas da arte e da memória, implica uma dupla leitura. Por um lado, sabemos que a arte está intimamente ligada ao ‘belo’ enquanto herança clássica e como condição de objeto da arte. Mas, à categoria do belo e do maravilhoso impõe-se, às vezes imperceptivelmente, o outro lado da mesma moeda, o escuro, o horrível e o sinistro. Hoje em dia, observa Gabriela, a reflexão sobre a arte torna inevitável considerar essa duplicidade da condição do belo e do sinistro, do traumático e do inefável, isto é, da memória do impensável da condição humana”. E, de fato, sabemos que a partir da segunda metade do século XX, além da presença de duas fortes tendências poéticas que às vezes se superpõem – a tendência à abstração e a vertente conceitual – também se constata a disposição dos artistas, sobretudo entre os anos 1960 e 1980, de confrontar o público com figuras regressivas: “exaltando o pré-genital e oferecendo-o sem retoques, o artista retoma, sobretudo, o que nos séculos anteriores havia sido omitido, negado, reprimido ou sublimado” (Gagnebin, 1999, p 226). É uma “poética do mal-estar” que, no mundo moderno/contemporâneo, propõe pensar com crueldade a condição humana.[2] No entanto, muito antes da instauração na arte dessa maneira de pensar, materializada em obras que consideram explicitamente a “memória do impensável da condição humana”, de certo modo, Freud já estava envolvido com ela, como explorador da arqueologia da alma, ao partir para a Grécia em busca de arte e se encontrar com um outro lado, que o surpreende, no meio da bela paisagem”. Freud, diz Gabriela (2020), torna-se “dividido em dois”: de um lado, “se contempla como componente da paisagem” e, de outro, “não admitindo a bela realidade, se retrai na dúvida sobre a existência da mesma”. E investigando a estranha experiência que implicou Freud na Acrópole, Gabriela considera-a como “transtorno da memória cujas razões repousam em experiências dolorosas da vida infantil”. Quer dizer, no “sentimento de alienação ou estranhamento (Entfremdungefühl), que Freud afirma ter surgido nele, efeitos e perguntas são relançados e se precipitam para além da interpretação freudiana, percebendo-se que uma experiência estética também ocorreu ali”. E a autora observa que no estranho fenômeno que impactou Freud no templo de Atena, “a alienação, o estranhamento e a perda de memória dão conta do que hoje podemos entender, também, como experiência estética, pois no encontro com a arte, com grandes obras, elas nos questionam, exigem de nós uma resposta, tal como aconteceu com Freud que se pergunta, intrigado, como se ele fosse outra pessoa, se o que ele sentiu era real”.
Ora, nesse aspecto, o pensamento de Gabriela Goldstein e o meu se aproximam, pois, no processo descrito por ela, a dor está presente de modo paradoxal. Mas, de que paradoxo se trata aqui?
Sabemos que uma dor intensa e duradoura pode impedir a ação, suspender o desejo e inibir o pensamento. No entanto, sabe-se também que uma dor profunda pode dar lugar não ao estupor, mas, paradoxalmente, a um ato imaginário que se concretiza em obra. E, nessa direção, como pensar o paradoxo do artista que se consome na dor ao mesmo tempo em que se consagra a expressar uma catástrofe que o atinge? Ora, é lugar comum pensar que o artista faz arte para espantar sua dor, apaziguar seus males e os de seus interlocutores. No entanto, de que dor se fala, nesse caso? Na história da arte, a questão da dor, assim como a da morte, não é mero tema entre outros, extraído pelos artistas da vida comum. Ao contrário, a história da arte mostra que há um vínculo essencial, mais profundo, entre experiência estética e experiência da dor, vínculo que às vezes surge para o artista e para o espectador de modo inesperado. Um exemplo bastante claro, nesse sentido, nos é fornecido pela relação surpreendente entre o pintor modernista Graham Sutherland e Winston Churchill que, além da política, também, praticava a pintura. Com efeito, sabe-se que em 1954, o pintor britânico foi convidado a fazer o retrato do primeiro ministro, quando este fez 80 anos. E, numa das inúmeras sessões de pose para o retrato, aconteceu um diálogo sobre arte, quando o pintor interrogou o motivo pelo qual Churchill pintou repetidamente o lago situado nos jardins de sua residência. Num dos episódios do seriado The Crown, essa notável conversa é representada, colocando em cheque as ideias de tradição e invenção, passado e futuro, quando entre as associações feitas por ambos, advém uma recordação dolorosa que emociona o ministro, submersa nas profundezas daquele lago, conservada pelo político ao longo da vida, embora ele próprio, enquanto pintor domingueiro, inconscientemente, tenha omitido para si mesmo, deixando-nos perceber, ao escutarmos a conversa, que o conhecido jamais havia sido pensado por ele. Mas, a arte estava lá para revelar, inadvertidamente, como “memória do impensável da condição humana”, uma zona sombria cuja natureza originária se mostrou aos olhos dos dois pintores como experiência estética – misteriosa, emocionante, surpreendente.
É esse vínculo originário entre existência e dor, entre experiência estética, arte e dor, que tem sido o tema motivador das minhas pesquisas nos últimos 30 anos (Frayze-Pereira, 1987; 2019), podendo ele ser vislumbrado desde a mitologia grega que nos permite afirmar: no princípio, não é o verbo; no princípio, é a dor. Nesse plano, Níobe e Dédalo são protagonistas exemplares. Conta a história que Níobe, altiva e fértil esposa do rei de Tebas, chora desesperada a morte de todos os seus inúmeros filhos e filhas, massacrados por ordem da vingativa Leto. Compadecido, Zeus transforma a mãe dolorida em um bloco de pedra do qual brotou para sempre um rio de lágrimas. Assim, o deus-escultor torna menos viva a dor de uma mortal que, petrificada, é eternizada, chorando os mortos. Por outro lado, o primeiro escultor-arquiteto humano, Dédalo, concebe o labirinto onde será encerrado o terrível Minotauro, construindo um cenário no qual se passará o enfrentamento do Homem com o essencial do destino humano: “experiência do monstruoso e luta contra a morte” (Frayze-Pereira, 2010). Ora, não é diferente o sentido da construção da Acrópole – lugar em que se venera a justiça, a sabedoria e toda forma de combate à decadência, no limite, à dor e à morte. E é Atena – deusa da civilização, da sabedoria, da estratégia em batalha, da justiça e das artes – que reina soberana nesse templo. Mas, Freud encontra o templo desconstruído. O impensável da condição humana se materializou no espaço mutilado, em ruinas. Assim, operar com a dor e através dela não é uma questão dos humanos, em geral, mas daqueles que se dispõem a fazer arte da condição humana, do mistério da existência, da sua comédia ou da sua tragédia. Cabe, então, a pergunta – será o objeto artístico aquele que persiste, depois da dor associada à criação e à destruição (afinal, segundo alguns autores, criar é destruir), atestando que existe sobrevivência à morte, que a imortalidade é possível? Freud teve a experiência dessa questão, ao visitar a Acrópole. E ele não foi o único, pois como muitos filósofos, historiadores e críticos de arte afirmam: o objeto artístico é a única coisa humana que resiste à morte, que transcende a dor instaurada pela violência, pela decadência física e moral, pelas doenças. Por esse motivo, no contato com as obras de arte, mais cedo ou mais tarde, o espectador implicado nelas se verá às voltas com perguntas perturbadoras que exigirão dele criatividade para responde-las, se quiser das obras ter experiência. Mas, o que seria a experiência? Esta é uma pergunta cuja resposta ficará para uma próxima vez.
Referências
Argan, G. A Arte e a Crítica de Arte. Lisboa, Stampa, 1988
Bourdieu, P. & Darbel, A. L’ amour de l’art : les musées et leur public, Paris, Éditions de Minuit, 1966
Frayze-Pereira, J.A. Arte, Dor. Inquietudes entre Estética e Psicanálise (2005). Cotia: Ateliê Ed, 2010 (2ª ed). [Iskusstvo i bol’ Problemy mezhdu estetikoy i psikhoanalizom. Moscou: Izdatel’skiy Neolit, 2019].
Frayze-Pereira, J.A. Olho D’Água: arte e loucura em exposição (1987). São Paulo, Escuta/Fapesp, 1995.
Gagnebin, M Du divan à l’écran, Paris, PUF, 1999.
Goldstein, G. La experiência estética – escritos sobre psicoanálisis y arte. Buenos Aires: del estante editorial, 2005.
[A experiência estética – escritos sobre Psicanálise e Arte. Terra de Areia (RS): Triângulo Graf. Ed., 2019].
Goldstein, G. La memoria como objeto de arte. La Época APA Online, 2020 https://laepoca.apa.org.ar/7/la-memoria-como-objeto-de-arte/
Merleau-Ponty, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard,1964.
Morgan, P. The crown. Seriado britânico, 2016.
[1] Primeira parte do texto escrito a propósito do livro de Gabriela Goldstein, A experiência estética – escritos sobre Psicanálise e Arte, a ser apresentado no seu lançamento, na SBPSP, em março de 2020, cancelado devido à pandemia. Este texto encontra-se no prelo a ser publicado como artigo.
[2] “Pensamento cruel” é uma noção inspirada em Walter Benjamin. Refere-se à elaboração crítica que “desaloja as pessoas dos lugares costumeiros, invalida hábitos, ameaça o conforto do que parece ‘dado’, do que é tido como certo, do que parece natural…”; seu propósito é “expressar as perspectivas nas quais o mundo revela suas fraturas para retomar a questão da atividade do sujeito como redenção, isto é como restituição daquilo de que fomos privados à nossa revelia”. (Frayze-Pereira, J.A. e Patto, M.H.S. orgs) Pensamento cruel – Humanidades e Ciências Humanas: há lugar para a psicologia? São Paulo, Casa do Psicólogo, 2007, ps. x-xi).
*João A. Frayze-Pereira é membro efetivo e analista didata da SBPSP. Professor livre docente do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da USP.
Crédito: Gabriela Goldstein. Pintura 5 da série “Promesse du bonheur” (La promesa de la felicidad). Tec. mix. sobre tela, 170 x 150 cm, 2008.