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O analista desconcertado e o pensamento

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“Não vos imagine diante de alguém amedrontador,
por ele possuir uma língua que gagueja e
de onde emana uma linguagem emaranhada,
fora de vosso alcance”
(Isaias, 33:19)

Sou frequentemente indagado, e por isso frequentemente me indago, o que é o pensamento para o psicanalista. A “resposta”, que aparece recorrentemente, é que “pensar é continuar a funcionar psiquicamente durante a tempestade”.

A metáfora meteorológica nos ajuda bastante a entender as oscilações do espírito humano e, por extensão, a caracterizar a dinâmica do encontro psicanalítico: o analista, no fundo, não passa de uma estação experimental que possa acolher as tempestades e as bonanças do analisando, devolvendo-lhe uma “previsão” de como isto poderá afetar a sua vida.

Tempestade, por supuesto, é sinônimo de turbulência, e, portanto, de fonte de desconcerto, ou melhor ainda, de desorientação. Nos meus anos de psiquiatra fui orientado a investigar na anamnese a orientação têmporo-espacial como um importante parâmetro a definir a sanidade mental do paciente. Doce ilusão! Será que Édipo, sabedor da exata localização geográfica do fatídico encontro na encruzilhada que alterou seu destino, bem como do exato momento histórico em que aquilo acontecera, teria dado um passo à frente no esclarecimento do drama da sua identidade?

Eis-nos, aqui, diante de mais um exemplo em que a psicanálise “recicla” os “descartes” da psiquiatria, elevando-os à categoria de matéria prima para seu processo investigativo da vida mental. Quantas vezes, ao acolher a massa de fragmentações psicóticas dos analisandos, não me senti perdido, desorientado e desamparado? E quantas vezes, ficando em contato com este universo caótico, por falta de alternativa, não percebi, para minha surpresa e alívio que, aos poucos, aqui e ali começavam a vagalumear focos de luz que prenunciavam a luz que buscamos no fim do túnel?

Isto me ensinou uma verdade de grande utilidade clínica: se entendermos a imersão num estado caótico como a única bússola possível a nos orientar no universo psicótico, teremos chance de nos movimentar neste labirinto com alguma desenvoltura.

Mas, retornemos à questão do que seria, em essência, “funcionar psiquicamente”. Freud descreveu o pensar como aquele “arranjo mental” (expressão minha) através do qual o psiquismo se sustenta entre o momento em que recebe um estímulo e o instante em que ele consegue satisfazê-lo. No entanto, malgrado a dimensão ciclópica de sua obra, ele não conseguiu nos fornecer um esclarecimento sobre a “fisiologia” deste processo.

Alguns desdobramentos posteriores de sua obra, como os de Melanie Klein e de Bion, nos permitem hoje começar a entender a microscopia deste processo. Muito resumidamente, sua essência consiste no fato de que o psiquismo só consegue se desenvolver através de um tropismo que o induz a preencher suas lacunas se assenhoreando de recursos existentes num outro psiquismo, sem abdicar daqueles recursos já consolidados em seu self. Esta busca, no entanto, não acontece de forma egoísta ou possessiva, mas sim de forma curiosamente desinteressada que sedimente uma troca procriativa: trata-se de um processo que Freud denominou de metapsicológico onde a forma é tão ou mais importante que o conteúdo, porque, através de artimanhas estéticas, produz um registro emocional sempre elegante e econômico.

Aos nos defrontarmos com a personalidade psicótica, no entanto, precisamos abrir mão destes parâmetros estruturais e nos lançarmos no espaço da infinitude indiferenciada, povoado por escombros não-sensoriais: se pudermos conter este cenário desconhecido, até que as primeiras cintilações de significado apareçam, poderemos começar a ajudar nossos analisandos a sair deste estado com algum ganho de integração.

*Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, médico (Faculdade de Medicina da USP), membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, da qual foi Presidente. Organizador dos Encontros Bienais da SBPSP e Editor das publicações correspondentes. Autor de Sismos e Acomodações: A Clínica Psicanalítica como Usina de Idéias (Ed. Rosari, 2003) e Dante e Virgílio: o resgate na selva escura (Ed. Blucher, 2017).  Tradutor e co-autor de livros sobre a obra de Wilfred Bion, no Brasil e no exterior.

Imagem: reprodução da obra “La réproduction interdite”, de René Magritte



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