O dia em que o Zoom foi uma janela aberta
Home Blog geopolítica O dia em que o Zoom foi uma janela abertaSegunda-feira, 12h, faltam 45 minutos para iniciar o seminário que coordeno no Instituto da SBPSP, que tem como título: Diferentes modalidades de intersubjetividade na Psicanálise. Clínica e teoria. São 30 integrantes, entre colegas em formação e membros associados. Sinto que não tenho condições de coordenar um seminário como faço a cada semana. A intensidade dos acontecimentos, o impacto da barbárie perpetuada pelo Hamas me impede. Cancelo o encontro? Envio um e-mail para o grupo? O que fazer? Tomei outro caminho, decidi que iria entrar no Zoom e colocar a questão para os participantes, afinal esta é a psicanálise na qual acredito, não sou negacionista nem na política, nem na psicanálise, vou compartilhar a minha perplexidade, revolta e dor ante o acontecimento e abrir o espaço para quem quiser se manifestar. O resultado foi um dos seminários mais intensos e interessantes que tive oportunidade de coordenar. Timidamente os colegas foram manifestando, aos poucos, a perplexidade, e a catarse deu lugar ao pensamento e à reflexão em torno da vida emocional, da constituição do Eu, da fragilidade da razão humana, da ausência de compaixão, dos efeitos acumulados e traumáticos da opressão do povo judeu que foi perseguido ao longo de centenas de anos e padeceu ao Holocausto; da opressão e humilhação do povo palestino. Pontes com conceitos psicanalíticos não faltaram. Pelo contrário, ganharam mais consistência e sentido encarnado. Quando chegamos às 14h15, horário de concluir o seminário, ninguém queria desligar o Zoom. Havíamos criado um espaço compartilhado para processar o não processável, sentíamos uma proximidade, houve contenção, desabafo e alguma reflexão.
Foi inicialmente o que me impulsionou a escrever, mas há muitas outras motivações. Leituras de jornais, mídias sociais, entrevistas em redes internacionais, CNN, BBC, etc. Hoje, se quisermos, podemos estar 24 horas plugados, sobrecarregados de informação.
Mas há um outro estímulo importante: participo de um grupo de WhatsApp com muitas lideranças democráticas de um amplo espectro político.
Nesse grupo, do qual participam políticos, juristas, educadores, lideranças negras e LGBTQIA+, coordenadores de ONGs e de movimentos sociais, os discursos e minha experiência foram bem diferentes daqueles do seminário. Pessoas inteligentes, militantes comprometidos com causas sociais e democráticas, mas vários (não todos) capturados por um pensamento dicotômico, maniqueísta, a lógica do mocinho e do bandido, do bem e do mal, em que a perda de perspectiva da complexidade da problemática Israel-Palestina é gigante. Em muitos momentos estive a ponto de sair do grupo, no entanto, decidi ficar, ouvir e participar. Não tem sido fácil! Quero selecionar alguns eixos que talvez sejam úteis e de interesse a você e a nós todos como analistas interessados na cultura e na construção de um mundo melhor.
1- Há uma confusão entre movimentos de libertação nacional e grupos terroristas. Uma confusão entre o que foi a luta armada na América Latina no confronto às ditaduras, os movimentos de libertação pós-colonial na África, inclusive a OLP, e os grupos terroristas como Hamas e o exército Islâmico, que justificam e legitimam matanças em massa de populações civis. Esta confusão não é apenas política, ela tem um profundo viés moral que não pode ser ignorado.
2- A propaganda organiza a apresentação dos fatos (embora muitos sejam reais sim!) selecionados cuidadosamente, um a um, para sustentar uma tese ideológica e parcial. Isto evita uma análise histórico-crítica da complexidade dos conflitos e os papéis que diferentes nações, grupos e interesses ocupam, de modo que as conclusões e os réus já estão a priori definidos e condenados, paradoxalmente da mesma forma que a ultradireita.
3- Qualquer aluno de mestrado que aprende a fazer pesquisa sabe que é uma falácia escolher dados para sustentar uma hipótese a partir da exclusão daqueles que não a confirmariam.
Em primeiro lugar, quero dizer que não sou nem historiador, nem cientista político, apenas um psicanalista que se interessa pela cultura e a política. Tenho a experiência de ter vivido alguns anos em Israel, ter me graduado na Universidade de Jerusalém, ter tido colegas judeus e palestinos, feito amizades, militado em grupos de palestinos e judeus pela paz em Israel, e vivido com dor e revolta a impossibilidade de se chegar a uma solução pacífica do conflito na qual ambos os povos (judeus e palestinos) possam conviver em paz e desenvolver todo seu rico potencial humano. Acho que tenho algum conhecimento da causa. Acreditem, isto que estamos vivendo dói mesmo e muito!
Sem conhecer e compreender a história minimamente, seremos sempre dominados por uma lógica binária ou por respostas emocionais. Sabemos que toda história tem múltiplas perspectivas, estudemos várias, escutemos as diferentes versões antes de formar ideias precipitadas. É claro que há fatos que devemos condenar por razões éticas e humanitárias de imediato! Mas, posteriormente, devemos nos conceder um tempo para estudar, escutar, conhecer e pensar.
Embora todos estejamos mobilizados emocionalmente hoje, já não apenas pelo massacre perpetuado pelo Hamas, mas agora também pela intensidade dos ataques israelenses a Gaza, autorizo-me a voltar no tempo.
Retomaria até um tempo anterior que é o da existência do Império Turco-otomano. Ele começou por volta de 1300, no território em que é hoje a República da Turquia, e terminou por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Sua extensão abrangia parte do Oriente Médio, do sudeste da Europa e do norte da África.
Sua derrocada final acontece durante a Primeira Guerra Mundial e instaura, entre outros fatos, a divisão do Oriente Médio entre as duas potências vencedoras: França e Inglaterra. De acordo com o Tratado de Versalhes, a França recebeu a Síria e o Líbano como mandatos, tropas francesas ocuparam esses países, permanecendo lá apesar da oposição local; e a Grã-Bretanha recebeu mandatos sobre o Iraque, Trans Jordânia (atual Jordânia) e Palestina. Estamos no tempo anterior à formação dos estados nacionais na região. Não havia claras distinções entre povo libanês, palestino ou jordaniano, embora existissem diferentes convicções religiosas, como mais católicos e cristãos na região em que hoje é o Líbano, por exemplo.
Dando um salto para a Europa (final do século XIX início do século XX), em função das persecuções na Rússia e na Europa Oriental nasce o movimento sionista, descrito hoje pelo Hamas e muitos grupos de esquerda como “colonialista, racista e imperialista”, mas cujo objetivo era criar um lar nacional para o povo judeu. O movimento migratório de judeus à Palestina, então região “do mandato britânico”, nasce como esperança redentora de um povo perseguido ao longo da história, desde a Idade Média com as cruzadas, posteriormente com a inquisição, continuando com os pogroms na Rússia e culminando com Holocausto perpetuado pelo regime nazista. Não existia à época estado ou nação na Palestina, mas sim, é claro, a população árabe (que habitava e transitava livremente por todo o Oriente Médio, famílias que se estendiam pelo que hoje são diferentes países da região). Em 1917, o Reino Unido profere a declaração Balfour “é a intenção do governo britânico de facilitar o estabelecimento do Lar Nacional Judeu na Palestina. Durante o crescimento do nazismo e as perseguições na Europa Oriental, aumentou o movimento migratório dos judeus para as Américas e para a região dominada pelo mandato britânico. Ao termo da Segunda Guerra, constatado o Holocausto e o massacre perpetuado pelo nazismo e outros grupos na Europa de 6.000.000 de judeus, a assembleia da ONU, em sessão coordenada pelo brasileiro Osvaldo Aranha, decide pela criação de dois estados na Palestina, ideia que veemente advogo, atendendo a demanda de ambas as partes que compartilhavam o território, já não sem conflitos.
Em 1948, aceitando a resolução e os termos da partilha da ONU, os judeus declaram a criação do Estado de Israel nas fronteiras estabelecidas. Os países árabes, em bloco, rechaçam a proposta e declaram guerra ao incipiente estado de Israel (estado de 650.000 habitantes emigrantes do pós-guerra, dos quais a maioria traumatizados, fugindo do Holocausto e das perseguições, Israel não era a potência militar que é hoje). Os confrontos tiveram início no dia seguinte à declaração do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, exércitos árabes combinados atacaram por três frentes diferentes. Os exércitos do Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita estavam então convergindo para uma minúscula faixa de território que agora era Israel.
Após a guerra na qual Israel sai vitoriosa, a Cisjordânia, a faixa de Gaza, assim como Jerusalém oriental ficam em mãos das nações árabes. Mas estas não declaram o Estado Palestino independente nesses territórios, Jordânia anexa a Cisjordânia e Gaza fica nas mãos do Egito. A história talvez seja mais conhecida a partir desse momento, uma sucessão de conflitos armados, atos terroristas e guerras. Destaco a guerra dos 6 dias, em 1967, em que Israel toma a Cisjordânia e península do Sinai, incluindo Gaza, e com este fato inicia-se uma nova e complicadíssima fase de ocupação na região.
O povo palestino padece desde então da política de ocupação israelense, mas também, e isto não pode ser economizado, padece das manipulações das grandes nações árabes. Lembrem do “setembro negro” na Jordânia quando mais de 10.000 palestinos são mortos pelo exército da Jordânia, os assassinatos em massa de palestinos por brigadas cristãs no Líbano, e muitos outros movimentos encobertos pelos jogos e interesses econômico-políticos da região, como os da Síria, Iraque, Irã, Arábia Saudita, Egito e outros países árabes que sempre mantiveram os palestinos na condição de refugiados.
Da lógica binária à lógica da complexidade.
Israel hoje não é aquele Estado incipiente e frágil de 1948, é verdade. Goza de enorme desenvolvimento tecnológico e poderio militar. Mas está muito longe de ser uma potência como muitas vezes se apregoa, veja os últimos acontecimentos e a guerra de Yom Kipur (1973), em que o exército de Israel foi pego de surpresa pelos exércitos egípcio e sírio no dia do perdão, sua população está exaurida pelas inúmeras guerras e estado de prontidão permanente. Como psicanalistas, sabemos como isto afeta a subjetividade e o cotidiano. Muitos acordos de paz vingaram como Acordos de Paz de Camp David, assinados pelo presidente egípcio Anwar Sadat e pelo primeiro-ministro israelense Menachem Begin em 1978, outros importantes não chegaram a se concretizar como os acordos de Oslo, que previa a retirada das forças armadas israelense da Faixa de Gaza e Cisjordânia, assim como o direito dos palestinos ao auto-governo nas zonas governadas pela Autoridade Palestina. Oriente Médio também não é mais o mesmo, o Irã há anos desponta como uma grande força econômica, política e militar com enorme influência, nem o mundo ocidental é mais o mesmo do pós-guerra ou da guerra fria. Forças se distribuem, interesses se reconfiguram, a gigante China entra em cena competindo com o império americano, a Índia desponta, o Brics, e a luta feroz da Rússia para não perder espaço.
A quem interessa manter a região em vivo conflito? A quem interessa que o povo palestino não possa ter seu estado ao lado de Israel em convivência pacífica permitindo a colaboração e florescimento econômico e cultural, hoje uma utopia?
Não pretendo responder, mas ouso pensar ou sonhar que palestinos e grande parte da população israelense se beneficiariam e aprovariam um cenário de parceria e desenvolvimento conjunto, vivenciei isto na década de 70 na minha residência em Israel. Mas hoje, o ódio, o ressentimento e a humilhação foram tomando conta. Ganharam os extremistas de ambos os lados.
O caminho dos dois estados (moral e politicamente justo) talvez seja o único que possa colocar fim a uma condição que se alastra há anos, impondo uma condição de vida insana para o povo palestino. Mesmo reconhecendo a violência e humilhação cometidas pelo estado de Israel contra os palestinos, pela brutalidade do atual governo do Netanyahu, sabemos que o Estado de Israel não é o único vilão da história.
Sabemos e devemos reconhecer que os palestinos foram ao longo destes últimos 70 anos manipulados pelos próprios interesses dos seus irmãos árabes da região, aliás estados antidemocráticos, ditatoriais, que desrespeitam os mínimos direitos individuais.
Estados poderosos que desde os anos 70 manipulam e são manipulados pelas potências em função de sua posição geopolítica e reservas de petróleo e gás.
Aprendemos na nossa clínica que a noção de alteridade é fundamental, lidamos com a radical diferença e encaramos a subjetividade do outro no contexto da intersubjetividade e da contratransferência. É claro que nos campos social e político mais amplos, a noção de alteridade ganha conotação e obedece a outros níveis de complexidade. Mas, sem dúvida, a psicanálise nos ajuda a compreender as diferenças e diversidades.
Temos exemplos de negociações impressionantes na Irlanda do Norte, na União Europeia, por que não poderá haver uma saída para o Oriente Médio? Qualquer saída sempre envolverá negociar com o outro, o adversário, o diferente de mim, por mais difícil que isto seja, e quanto mais tornarmos o outro nosso “inimigo”, o destituímos de sua dignidade e direito à existência, justifica-se assim sua aniquilação, como nos alerta a cientista política Chantal Mouffe.
Assim procedem o Hamas e outros grupos terroristas. Eles oprimem seus povos, geram catástrofes humanitárias nos seus “inimigos” e retaliações que afetam dramaticamente os povos que dizem defender.
Não há soluções simples. O diálogo e a renúncia são necessários (renúncia de territórios, de verdades únicas, de hegemonia de uma religião sobre outra, de interesses econômico-políticos e também narcísicas). Diálogo, negociação, mútuo reconhecimento e renúncias aparecem como únicos caminhos possíveis para busca de uma paz duradoura. Perdemos a inocência há tempos… Para que isso possa vingar, não basta que israelenses e palestinos negociem. Os poderosos estados da região (Irã, Arábia Saudita, Egito, Síria), assim como as grandes potências (Rússia, EUA, União Europeia, China) deveriam rever seus interesses político-econômicos para favorecer a criação de um Estado Palestino ao lado de Israel.
Muita coisa precisa mudar e isso não se dará por palavras de ordem extremas. Atos concretos se fazem necessários, mas sem dúvida alguma o terrorismo jamais será uma opção!
* Texto original publicado no Observatório Psicanalítico – OP 430/2023 e adaptado para o Blog da SBPSP.
Bernardo Tanis é membro efetivo e docente da SBPSP, doutor pelo Núcleo de Psicanálise da PUC. Foi presidente da SBPSP (2017-2020) e editor chefe da Revista Brasileira de Psicanálise – RBP (2010-2015).
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