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O prazer autêntico

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Outro dia, no café da manhã, estavam minha neta e a mãe conversando, não me lembro sobre o quê. A menina de cinco anos se manifestava com doçura sobre o que a mãe lhe dizia. Tive uma destas raras oportunidades na vida de enternecimento profundo e um desejo que o momento fosse perene, embora me viesse ao fundo a sensação imprecisa de um futuro, colorindo o presente.

Estava visitando um Museu de Arte Moderna e ao subir de um andar para o outro, havia um pequeno patamar intermediário entre as escadas. Eu estava atento aos degraus de forma que toda minha atenção estava voltada para o chão e chegando ao patamar elevei  os olhos e me deparei de súbito com um quadro que me proporcionou extraordinário encantamento: Tempestade em noite estrelada – Vincent van Gogh – cuja foto eu já conhecia, mas a emoção foi muito diferente ao contemplar o original.

Estas descrições são pano de fundo para o que chamei de prazer autêntico.

O prazer autêntico não é um estado de êxtase, embora possa sê-lo.

Não é um estado de dor, embora possa sê-lo.

Não é um estado de contemplação, embora possa sê-lo.

Não é “insight”, embora possa sê-lo…

 

Mudando a direção.

Uma cliente, muito sensível e perspicaz, acusou-me e à psicanálise de que nós procurávamos somente a dor do cliente para poder trabalhar.

Eu já vinha me debatendo com esta situação e com a origem médica da psicanálise e que a razão do cliente nos procurar é a dor, predominantemente mental. Sem discordar dessa afirmativa, comecei a conjecturar que o cliente nos procura para que na vida possa desfrutar do encantamento de vivê-la, o que eu chamei de prazer autêntico.

Para prosseguir vou pedir o auxílio de um semioticista – Greimas[1] – que ao analisar um livro sobre um náufrago que passou a viver numa ilha deserta, descreve a rotina rigorosa e cruel em que este vivia para assegurar sua sobrevivência e eis que um fato inusitado rompe com o sistema estabelecido.

Introduzo diretamente o texto de Greimas.

Robinson – o de Michel Tournier[2]– que até este momento havia conseguido ordenar sua vida segundo o ritmo das gotas de água que caiam uma a uma de uma clepsidra improvisada (relógio de água), encontrou-se de repente despertado pelo “silêncio insólito” que lhe revelou o ruído da última gota a cair na bacia de cobre. Voltando a cabeça, verificou que a gota seguinte, aparecia timidamente sob o garrafão vazio, adotava um perfil piriforme, hesitava depois, como se desencorajada, tomava sua forma esférica, “renunciando decididamente a cair”, chegou mesmo a “esboçar uma inversão no curso do tempo”.

Robinson se recostou para saborear durante alguns momentos esta inesperada suspensão do tempo.

Greimas faz riquíssimas considerações a respeito, se servindo de início do conceito de fratura, ao considerar o cotidiano do sujeito como uma sequência linear e que subitamente sofre uma ruptura, como quando há uma suspensão da queda consecutiva da gota que permite a Robinson saborear durante alguns momentos a suspensão do tempo. Vale a pena considerar a espessura da fratura onde se dá a experiência estética, o espaço de tempo diminuto em que o sujeito se depara com o acontecimento extraordinário que o retira do universo de previsibilidades e o encanta.

Como se vê, com a contribuição de Greimas e o recurso da estética, posso ampliar o conceito de prazer autêntico no que se refere à ruptura do sistema utilizado pelo cliente e, também, por considerar que a importância disto é o que permite a possibilidade de mudança de visão de mundo e de si mesmo, bem como o inesperado de perceber a graça e encantamento de viver no cotidiano da existência.

 

Cecil José Rezze é membro efetivo e analista didata da SBPSP.

[1] Greimas, Algirdas Julien. (2002) Da imperfeição. São Paulo. Hacker Editores.

[2] Tournier, Michel. (2001) Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil.

Imagem: O nascimento de Vênus. Sandro Botticelli (1484)



Comentários

6 replies on “O prazer autêntico”

Telma Ferraracio disse:

Cecil,
Bion considerou o pensamento sem pensador, o pensamento que flutua e que busca uma mente onde se alojar. Para tanto, dizia ele, haveria que se estar preparado. Sua teoria do prazer autêntico traduz esta ideia. Obrigada pela coragem do voo nos proporcionando o prazer autêntico em acompanhá-lo nesta jornada.

antonio carlos eva disse:

Cecil procura descrever episodios que vao alem de perceber a dor na funcao mental. Estes episodios fazem parte da funcao psicanalitica ainda que nao provoquem dor. Talvez seja uma forma de dar novos limites a psicanalise incluindo
.aspectos nao dolorosos

Danilo Firmino da Costa disse:

Cecil, penso que está contemplado em seu texto o prazer autêntico que muitas vezes podemos desfrutar no cotidiano e no vínculo estabelecido entre analista e analisando. Me ocorreu também que muitas vezes é desta possibilidade de prazer que surge o encontro com a “dor do analisando”.
Obrigado pela reflexão.

Rosa Broner Worcman disse:

Cecil, vivenciar a possibilidade de ser e estar feliz. Foi a tradução que fiz de sua reflexão.

Ester Sandler disse:

Querido Cecil
Um prazer enorme ler o teu texto, a piece of beauty is a joy forever
Obrigada

Ester sandler disse:

Querido Cecil
Foi um encantamento ler o teu texto, algo que sempre sinto quando releio sobre Transitoriedade. Mas, o belo é eterno
Obrigada
Ester

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