O psicanalista nas fronteiras
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* Talya S. Candi
O limite e a psicanálise contemporânea
A psicanálise contemporânea avança firmemente rumo às fronteiras e nos obriga a debruçarmos sobre o que o psicanalista André Green denominou de metapsicologia dos limites. É o que indicam os múltiplos colóquios e ciclos de conferências organizados pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e pela Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) que abordam este tema.
O conceito de “fronteira” surge em 1975, a partir da noção de “limites da analisabilidade”, (título da revista Nouvelle Revue de Psychanalyse n°10, editada pelo psicanalista J.B Pontalis com a colaboração de A. Green). A partir deste momento começa a surgir uma clínica psicanalítica ampliada dos estados limites que não designa uma nova categoria clínica (o paciente borderline, não neuróticos ou psicossomático), mas propõe trabalhar a partir de uma nova tópica: uma tópica que coloca o trabalho analítico no limite do funcionamento mental do analista, entre a possibilidade de escuta dele próprio e do paciente. Tratam-se, por definição de pacientes, situações, estados, experiências que põem em xeque o método interpretativo psicanalítico clássico e exigem por parte do analista uma firme implicação afetiva e uma elasticidade técnica.
Percebendo a potência heurística da noção de limite e das áreas fronteiriças, André Green, incorpora, em 1976, a noção de limite ao arsenal metapsicológico freudiano e a transforma num dos conceitos mais fundamentais da psicanálise contemporânea. Diz ele: “Devemos considerar o limite como uma fronteira móvel e flexível, tanto na normalidade quanto na patologia. O limite é, talvez, o conceito mais fundamental da psicanálise contemporânea. Ele não deve ser formulado em termos de representação figurada, mas em termos de processos de transformação de energia e de simbolização” (1976, p. 126).
A metapsicologia dos limites é uma quarta dimensão metapsicológica que se soma à dimensão econômica, topológica e dinâmica, e instrumentaliza o psicanalista para que possa se debruçar sobre as mudanças psíquicas e as transformações que acontecem entre o Id, Ego e Superego, entre o inconsciente e o consciente, entre o dentro e o fora, tanto do lado paciente quanto do lado analista.
Entre o sonho e a dor: O duplo limite
Neste novo contexto, a própria concepção do aparelho psíquico começa a ser vista a partir da referência ao limite, pois a funcionalidade do aparelho mental, a sua plasticidade e a sua capacidade de se movimentar, reside em suas duas áreas fronteiriças. A primeira área intersubjetiva permite a delimitação e a interação do mundo de dentro e do mundo de fora, a segunda intrapsíquica (que pode ser comparada ao pré-consciente) serve de barreira de contato entre os conteúdos conscientes e inconscientes, funcionando como uma pele psíquica porosa para a vida fantasmática do inconsciente e do sonho, na interseção destes dois eixos encontram-se os processos de pensamento[1].
Surge assim um modelo original de um aparelho psíquico contemporâneo formado por um duplo limite (Green, 1982) idealizado pelo A. Green a partir da metapsicologia dos limites.
Sem fronteiras funcionando adequadamente, o psiquismo se estrutura precariamente, mantém-se a impossibilidade de organizar o tempo e o espaço, domina a bidimensionalidade (particularmente no âmbito edípico) e a circularidade temporal. Nesta configuração, a capacidade de sonhar é frágil, o pensamento não consegue se desenvolver como um meio capaz de produzir mudanças psíquicas, transformar a realidade e torna-se uma ruminação interminável, onde predominam afetos fragmentados tais como o isolamento e o ressentimento.
Green insiste repetidamente na necessidade de trabalhar a partir de uma dupla referência ao limite formada por dois polos complementares e antagônicos (uma dupla significância, dupla representância), já que na psicanálise o polo interno ligado ao inconsciente é constitutivo da percepção da realidade e, inversamente os conflitos que vivemos na realidade externa, vai construir nosso inconsciente.
Novos caminhos para pesquisa psicanalítica contemporânea
Gostaríamos de sugerir que o modelo greeniano do duplo limite aponta para duas direções de pesquisa teórico-clínica, dois campos complementares e antagônicos que não se confundem entre si, mas que trabalham em ressonância e ecoam inevitavelmente entre si.
Por um lado, temos o trabalho na vertente do limite intersubjetivo, dentro e fora, que aponta para a pesquisa da psicanálise extramuros e dos pacientes não-neuróticos. Para realizar tal tipo de pesquisa o analista contemporâneo deve estar preparado para trabalhar em situações concretas de carências e desamparo, trabalhando na comunidade, em parceria com a saúde pública em instituições variadas (creches, escolas, hospitais, presídios), com populações que frequentemente não teriam condições de chegar para o consultório.
Denominamos este tipo de trabalho: trabalho da dor. O analista terá que perder a sua identidade e mergulhar nas vivências traumáticas e nas transferências dolorosas para representar o irrepresentável, criar sentido, elaborar a sua impotência e insuflar vida em situações extremas.
Ora este campo intersubjetivo no limite da analisabilidade somente pode percorrer o caminho das transformações se é elaborado pelo limite interno intrapsíquico regido pelo trabalho do sonho, que outorga figurabilidade e representação a dor psíquica.
Abre-se assim um segundo campo de pesquisa tão importante quanto o primeiro ligada ao limite intrapsíquico que se inaugura na própria análise do analista. Esta segunda frente de pesquisa teórico-clínico instrumentaliza o analista para lidar com os conflitos internos, ampliando a sua imaginação clínica, a sua capacidade de sentir, viver os afetos catastróficos e perturbadores e de pensar o impensável usando símbolos para sonhar e brincar com as experiências. É a capacidade de sonhar as experiências que permite representar e transformar os afetos agônicos em pensamento, ampliando a espessura do limite pré-consciente e inconsciente.
Somente por meio desta dupla pesquisa, sonho e dor que o analista contemporânea poderá ampliar seu poder de ação e avançar nos territórios dos limites da analisabilidade, usando da transferência para deixar se colocar entre sonho e realidade, dentro e fora, passado e futuro.
O psicanalista nas fronteiras é um sujeito aberto às transformações, que se debruça sobre as vicissitudes das mudanças psíquicas que acontecem nele próprio e no seu paciente. É a capacidade de sonhar nossas experiências que dá sentido para nossa precária humanidade, através dos múltiplos cortes e suturas que transformam a repetição em memória e viabilizam o desenrolar de criação de sentido da nossa experiência de vida.
Neste novo mundo sem sentido no qual a concretude ganha cada vez mais espaço, cabe ao psicanalista a difícil tarefa de ter uma identidade fluida, uma escuta polifônica que possibilite criar um diálogo entre os nossos anseios mais internos ligados à nossa fragilidade, desamparo e dor, que caracteriza o humano e as exigências de uma realidade externa cada vez mais cruel e exigente.
Bibliografia
C, Botella (organizador): Penser les limites: Ecrit en honneur dAndré Green, Ed Delachaux et niesttle, Paris, 2002
- Candi: O Duplo Limite: O aparelho psíquico de André Green, ed. Escuta, 2010
- Green, 1982: O duplo limite. in a Loucura privada: psicanálise dos casos limites, Ed Escuta, 2017
* Talya Saadia Candi é psicanalista, Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), autora do livro “O Duplo Limite: O Aparelho Psíquico de André Green” e organizadora do livro “Diálogos Psicanalíticos Contemporâneos”, ambos da ed. Escuta.
[1] Remeto o leitor interessado ao texto de André Green intitulado “O duplo limite”, 1982
2 replies on “O psicanalista nas fronteiras”
Texto maravilhoso. Obrigada por compartilhar uma percepção diferenciada que instiga à reflexões tão necessárias à contemporaneidade.
Muito bom! Real, sentido e sofrido.