O que significa ser ou pretendente a ser membro IPA
Home Blog IPA O que significa ser ou pretendente a ser membro IPATranscrevo abaixo a reformulação recente da missão IPA (março 2024):
“A Associação Psicanalítica Internacional (IPA) é uma organização de membros e existe para promover a psicanálise. Fundada por Freud em 1910, é o principal organismo mundial de credenciamento e regulamentação da profissão. A sua missão é: especificar princípios fundamentais de formação para psicanalistas; desenvolver e credenciar sociedades psicanalíticas; estabelecer padrões éticos para os seus membros; e fortalecer a vitalidade da investigação e transmissão da psicanálise. Os seus objetivos centrais são promover e reforçar o sentimento de pertencimento dos membros a uma comunidade psicanalítica internacional e assegurar o desenvolvimento vigoroso da psicanálise clínica e do pluralismo teórico. A IPA está empenhada em compreender o impacto do mundo contemporâneo nos indivíduos, grupos e comunidades e em intervir psicanaliticamente nas questões sociais.”
A razão da fundação da IPA em 1910 foi a defesa da psicanálise de charlatões, daqueles que em nome da psicanálise exercem práticas clínicas com fundamentos – se é que os têm – diversos senão opostos às dela. Levou mais de uma década para consolidar um programa de transmissão e formação da psicanálise dentro da IPA, que se materializou com o Instituto de Berlim, sob o patrocínio e a condução de Max Eitingon. Os padrões conhecidos (análise pessoal, supervisão e seminários teóricos e clínicos, além da consciência recente do eixo importante do convívio institucional) permanecem até hoje com versões levemente modificadas. Essas opções históricas são consequências de debates bastante acalorados, que levaram muitas vezes a dissenções e rupturas, até a saída de alguns da organização, mas que deixaram marcas na formação IPA. A formação continua sendo a preocupação central da nossa associação. O eixo central dessa formação, a análise do analista, tem sido o motivo central da discussão. O esforço essencial tem sido manter o caráter privado da análise, sem deixar de atentar para ele no fulcro da formação analítica. O relatório sobre o primeiro ano de análise didática, feito pelo analista didata sobre o candidato analisando, foi eliminado. Para outros, alguns analistas franceses que absorveram o ensino de Lacan, era importante pensar a experiência analítica como um impulsionador para a busca da formação. Portanto, tornou-se um pré-requisito não apenas formal, mas a análise do pretendente era investigada rigorosamente nas entrevistas de admissão assim como no acompanhamento da formação através do trabalho clínico do candidato refletido nas supervisões e seminários. Em 1971-2, a Associação Psicanalítica da França (APF) foi aceita pela IPA com essa nova versão na qual o candidato já concluiu ou estava em análise com analistas seja da própria associação (podendo ser candidato) seja fora dela. A didática se centrava nesse caso nas supervisões. A terceira versão surgiu também em meados dos anos 70 (mas foi aceita pelo Board da IPA em 2007) na Associação Psicanalítica de Uruguay (APU) como versão intermediária entre a majoritária de Eitingon e a da APF. Nela o pretendente a candidato tem como pré-requisito uma análise pessoal em andamento com um membro da APU de pelo menos 18 meses. Vale mencionar que uma análise nos três modelos deve manter uma frequência de 3 a 5 sessões na semana. No modelo APF sua duração é determinada pelo processo e acordo entre o par analista e paciente. No modelo da APU, o candidato deve estar em análise quando conclui o relatório de sua primeira supervisão. Já no modelo clássico de Eitingon, adotado pelas federadas brasileiras, a duração varia: ou está formalmente determinada previamente em 5 anos (há grupos na Europa com maior duração) desde a aceitação como candidato ou vinculada à conclusão do relatório da primeira supervisão, ou à conclusão de todos os requisitos institucionais como candidato, ou seja, ao tornar-se membro da sociedade. Quanto a outros eixos da formação, requisita-se pelo menos duas supervisões oficiais, com durações variáveis, além dos seminários e o convívio participativo na instituição. Existem também critérios procedurais diferentes para a conclusão da formação e a passagem de candidato para membro na sociedade. Nos últimos anos, a formação em análise de bebês, crianças e adolescente foi integrada à formação a de adultos em algumas de nossas federadas, sendo que outras encontram-se no processo de adaptação a ela.
A IPA, conforme sua missão citada acima, credencia, inicialmente, grupos em processo de constituir semente de institutos de formação para em seguida se tornarem sociedades reconhecidas (são os Study Groups, a cargo do ING – International New Groups Committee). A promoção da psicanálise em regiões na quais os grupos de estudos não se estabeleceram ainda, os procedimentos de formação vão se consolidar em ritmo paulatino a partir de núcleos de membros de sociedades já estabelecidos ou de grupos didáticos de tais sociedades que auxiliam, no início, para constituir núcleos de estudos e análises e supervisões remotas e híbridas (visitas condensadas em centros de formação mescladas com formação à distância). Trata-se aqui de uma instauração lenta e progressiva e não numa imposição em bloco dos eixos de formação tais como implementados em institutos já estabelecidos.
Seja como for, pertencer à IPA ou pretender a ser membro dela significa se submeter ao seu regulamento e credenciamento implementados pelos institutos de formação de seus grupos de estudos e sociedades.
Entretanto, as razões iniciais de existência e a permanência da IPA se reconfiguraram nesses 114 anos desde sua constituição. E isso em função da história externa e interna da psicanálise e seu meio civilizatório. De um lado, foi a partir dela que a psicanálise prosperou fora da IPA, e as instituições e grupos paralelos de formação, acoplados ao ensino da psicanálise nas universidades, criaram uma interlocução e colaboração cada vez mais profícua entre praticantes e autores dentro e fora da IPA. Ademais, além das definições iniciais da psicanálise como método, cura e investigação da alma humana, integrou-se a ela, conforme a missão citada acima, a concepção freudiana de que a psicanálise é uma psicologia social e pretende aprofundar a compreensão desse elo com a cultura contemporânea, para poder melhor intervir no campo social e lidar com os males que o acomete junto a outras disciplinas no universo político geral. Nesse terreno, a interlocução da psicanálise com vários campos de saber como a filosofia, a ciência, a história, a antropologia, a literatura, a música, o direito, a medicina, a tecnologia, os esportes etc., no amplo terreno da pólis, vem progredindo. Muitos desses campos têm integrado a compreensão da psicanálise dentro de seu campo de estudo. Já a psicanálise apenas recentemente vem reconhecendo a importância em desempenhar ações afirmativas a partir dessas interlocuções e visitas a esses campos de saber e práticas. Ela vem assimilando programas de formação psicanalíticas de partes da população com poucas condições de arcar com seus custos e seus esquemas. Ela vem se manifestando, instrumentada pelos seus meios de conhecimento, para se manifestar e intervir em relação a diversas questões contemporâneas, como as discriminações de gêneros e raciais, o desmantelamento climático, a ditadura do digital, as guerras e as injustiças sociais além de fornecer clarões em relação a literatura, a arte etc. Tudo isso compõe a missão da IPA, mas, para tanto, a IPA e os psicanalistas e seus grupos fora dela tiveram que ampliar não somente seus programas de seminários de formação, mas também suas discussões científicas, além de suas áreas de intervenção na comunidade e junto às instituições sociopolíticas. Tudo isso configura um amplo terreno para explorações futuras.
Quanto às razões da constituição da IPA, a questão do charlatanismo tem se deslocado em função do caráter crescente da burocratização no avanço civilizatório. A ampliação robusta da psicanálise em seus conhecimentos técnicos e teóricos circunscreveu o nosso campo de saber, configurou firmemente a profissão e o ofício de psicanalistas. Entretanto, isso ocorreu apenas dentro das instituições psicanalíticas cuja programa de formação, a exceção de poucos casos, se situa fora das universidades e institutos de formação profissionais reconhecidas pelos órgãos governamentais. O problema hoje é a regulação dessa profissão junto aos órgãos governamentais que lidam com esse tema. A ameaça do charlatanismo comparece desse lado, já que grupos políticos com força econômica considerável oferecem hoje cursos de formação em psicanálise nas universidades e obtendo reconhecimento dos ministérios da educação, além de buscar no congresso nacional a legalização da profissão de psicanalista em seus termos, avalizados por profissionais que se situam longe de nossos critérios psicanalíticos. Outra batalha de nossas instituições se centra no reconhecimento da psicanálise e seu papel na saúde mental. A psiquiatria e outros campos da medicina e ciência tentam destituir nossa legitimidade. Ou seja, tudo isso se situa no campo de direito, e a batalha continua sendo árdua e longa.
Quanto aos eixos constitutivos da formação analítica é admirável percebermos que apesar do grande aumento no conhecimento psicanalítico, o enquadre de formação com seus requisitos empíricos permaneceu intacto dentro da IPA por mais de um século. Desde o início da psicanálise tem se investigado a relação desse enquadre externo com a assimilação de uma função analítica. Recentemente, Green e Ogden, dois autores importantes, formularam, respectivamente, o enquadre interno do analista e o terceiro analítico como propósitos maiores da função analítica. Esses conceitos nos aproximaram a uma compreensão mais acurada de parâmetros não sensoriais da aquisição da função analítica. As mudanças urbanas e epocais também nos obrigaram a refletir sobre as condições mínimas de formação. A experiência de formação na sociedade psicanalítica de Paris, onde se praticou, por mais de meio século, análises didáticas com frequência menor, de três sessões por semana, sem prejuízo na formação, assim como a observação de trabalho analítico com frequências menores das tradicionais desde Freud (de 6 a 4 sessões por semana), levaram após muitos mal-estares na IPA, a mudança na análise de formação entre 5 a 3 sessões por semana (Buenos Aires, 2017). Nesse momento, estamos na esteira de uma espécie de revolução no código procedural de formação na IPA em função de uma experiência que vem se acumulando na última década e tem se consolidado a partir da pandemia do Covid-19. Trata-se da integração do atendimento remoto, on-line, nas análises de formação e nos outros eixos da formação analítica da IPA, com as restrições circunstanciais que dizem respeito aos enquadres clínicos, de um lado, e, de outro, às demandas demográficas, geográficas, climáticas entre outros. Para alguns essa mudança ameaça a dissolução da psicanálise, para outros, um avanço e sofisticação da psicanálise, sua integração maior dentro das condições atuais da cultura. A mudança prevista se embasa numa pesquisa ainda inicial, porém suficientemente asseguradora para que a IPA continue investigando esse veio possível e se mantenha vigilante para garantir o progresso da psicanálise. Ser psicanalista é, a meu ver, pertencer a uma comunidade de colegas, que juntos se submetem à crítica constante dos parâmetros de seu ofício e se arriscam em optar pelas mudanças que favorecem, caso resistam às provas da realidade, o avanço desse campo tal como explicitado na missão de uma de suas organizações principais, a IPA.
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Daniel Delouya é psicanalista, membro efetivo, com funções didáticas, da SBPSP. Coordenador alterno da Comissão de Transmissão e Formação da FEPAL e membro do board da IPA pela América Latina.
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