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Olhar o que não pode ser visto, escutar o inaudível? Contribuições da Escola de Psicossomática de Paris

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Cândida Sé Holovko

Vemos emergir padrões de comunicação na clínica da contemporaneidade que expõem a precariedade das nossas teorias consagradas e nos lançam na perplexidade de encontrarmos respostas para caminhos que ainda necessitam ser construídos. Eis o que ocorre quando as questões do corpo – dos corpos doloridos, enfermos, violentados, modelados exaustivamente pelas novas tecnologias – emergem e predominam na situação psicanalítica.

A constituição familiar da qual o indivíduo participa organiza a experiência corporal e psíquica e está certamente inserida em um contexto cultural. A própria organização corporal tem uma dimensão que é dada pelas características da pessoa, mas é dada também pela visão de mundo, mitos e representações familiares. Há famílias em que áreas do corpo são tabus e que favorecem o surgimento de buracos a nível psíquico. Para que o corpo tenha existência psíquica é necessário encontrar registros de representações corporais que inicialmente são experimentados na relação com um outro que dá significados à pessoa.

Penso que a noção de um monismo somapsique desde Freud, é hoje a base essencial para toda aproximação psicanalítica e que essa unidade somatopsíquica  sob condições favoráveis tende a tornar-se mais complexa ao longo da vida do indivíduo.

Os fundadores da Escola Psicossomática de Paris (Pierre Marty, Michel Fain, Michel de M`Uzan, Christian David ), nos meados do século passado,fazem uma ruptura com o pensamento corrente da medicina psicossomática  e centram sua atenção e pesquisa no funcionamento mental de pacientes com forte tendência à somatização. Segundo Szwec (2017) « Qualquer que seja o sintoma somático, os psicanalistas da Escola de Paris, não se comportam mais como médicos, mas como psicanalistas »pág 13.

Nesta clínica psicossomática, a atenção privilegiada é dada ao funcionamento da organização psicossomática do indivíduo, às situações traumáticas que excedem a possibilidade do aparato psíquico de conter as excitações delas originadas e a incapacidade de representá-las simbolicamente. Por exemplo, quando a pessoa experimenta perdas graves, traumas, lutos não elaborados, etc., o sistema funcional psíquico ao não encontrar uma via de expressão nem psíquica, nem comportamental pode abrir caminho para o surgimento de doenças corporais. Nesse modelo, qualquer excitação – vinda do interior do sujeito ou de impactos do mundo externo – deveria ser contida por um aparato psíquico capaz de processá-la. Se isso não ocorre, às vezes vemos desencadear-se saídas defensivas com menor ou maior carga patológica (regressões somáticas positivas ou desorganizações progressivas com manifestações de doenças graves, etc…) ou seja, observamos, em alguns casos, meses depois da perda de um ou mais entes queridos, por exemplo, doenças mais passageiras, como infecções respiratórias, urinárias, gastrites, enxaquecas ou o aparecimento de doenças mais graves, como um acidente vascular cerebral, doenças autoimunes,  um ataque cardíaco, um câncer, como saídas possíveis para a sobrecarga dessas excitações não ligadas psiquicamente.

Chegar a possuir um corpo integrado psicossomaticamente, banhado pelas experiências intercorpóreas pulsionais e afetivas é uma conquista. Conquista que só é possível alcançar pela participação de um outro ser humano, que o tenha sustentado e investido amorosamente em sua autoestima, durante um tempo considerável de trocas afetivas/emocionais ritmadas e contínuas.

Poderíamos certamente supor que uma pessoa que tem falhas profundas na constituição do seu eu, nas trocas intersubjetivas, com dificuldades de fazer ligações amorosas, e mais exposta à sua pulsão de morte estaria muito mais sujeita a doenças do corpo.

Constatamos frequentemente que na clínica psicossomática, será no corpo a corpo da experiência analítica que o processo vai desenrolar-se e a/o analista será convocada/o a entrar na relação de corpo e alma, com os impactos em seu corpo e em seu psiquismo.  A tarefa fundamental de restabelecer no analisando um incremento de amor próprio, de construir ligações do que foi suprimido ou clivado e ficou sem sentido, parece ser a base para que algo de novo possa germinar e sair da imobilidade do congelamento psíquico. Aqui, ganha sentido na clínica a expressividade associativa não verbal do analisando no lugar da associação livre tão simplesmente.

O trabalho psicanalítico nesta clínica será mais voltado para a reconstrução do tecido psíquico danificado ou não constituído,acompanhando os momentos em que os sintomas corporais dão lugar às vivências psíquicas com maior elaboração simbólica e onírica, ou seja, momentos em que a dor física cede lugar a uma história compartilhada.

Como estamos em um universo sempre em busca de palavras para nomear as experiências vividas, os versos do grande Drummond pode iluminar um pouco mais esse “vasto mundo”.

“….

Meu corpo apaga a lembrança que eu tinha de minha mente.

Inocula-me seu patos, me ataca, fere e condena por crimes não cometidos.

 

O seu ardil mais diabólico está em fazer-se doente.

Joga-me o peso dos males que ele tece a cada instante e me passa em revulsão.

…..”

 

Bibliografia:

Drummond, C ( 1984) O corpo. Companhia das Letras, 2015. São Paulo

Freud, S. ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, ed. Standard Brasileira ,Editora Imago, 1969, Rio de Janeiro.

——(1920) Mais Além do Princípio do Prazer. Edição Standard Brasileira

____ (1923) O Ego e o Id. Edição Standard Brasileira.

Marty,P (1993) A Psicossomática do Adulto. Artes MédicasSul , Porto Alegre.

Smadja,C.( 2001) La Vie Opératoire. Études Psychanalytiques. PUF, Paris.

Smadja,C. ( 2013)Deuil, Mélancolie et Somatisation In Revue Française de Psychosomatique ( L’Afect), PUF,Paris,. n.44, pag 218

Szwec, G. ( 1998) Les galériens volontaires. PUF. Paris

Szwec, G. (2017) La Psychosomatique quelques débats aprés…In La Psychosomatique, organizado por Félicie Nayrou e Gérard Szwec , PUF, Paris, pag 7

 

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Este artigo terá acréscimos conceituais e ilustração clínica na apresentação do dia 23 de Novembro, na SBPSP, no Evento “A Psicanálise e suas Clinicas, A Clínica da Psicossomática”.

 

 

Cândida Sé Holovko é Membro Efetivo da SBPSP e da IPA; Coordenadora do Grupo de Estudos Psicossomática Psicanalítica da Escola de Paris na SBPSP; Membro em final de formação do Instituto de Psicossomática de Paris: Coordenadora do Committee on Women and Psychoanalysis (COWAP- IPA) para a América-Latina ( 2014-2017). Organizou três livros sobre o tema: Sexualidades, Gênero e Funções Parentais pelas editoras: Letra Viva da Argentina (2016), Karnac de Londres ( 2017) e Blucher de São Paulo (2017).



Comentários

One reply on “Olhar o que não pode ser visto, escutar o inaudível? Contribuições da Escola de Psicossomática de Paris”

Flor moraes disse:

maravilhoso

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