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Papai adivinhou meu desejo!

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A mãe põe o filho para dormir. Enquanto adormece, ele a abraça apaixonadamente e diz que gosta muito dela.

Nisso, se ouve um barulho no quarto ao lado. Ele diz: Pai? E mais uma vez, como se quisesse conferir. Pai???

E logo em seguida: mamãe, tenho medo do lobo mau.

Tenho 6 anos e vivo com papai e mamãe. É ela que me põe para dormir todas as noites. É um dos melhores momentos do meu dia!

Quando nasci, mamãe se responsabilizou pela minha sobrevivência física e emocional. Ela não assinou nenhum documento, claro, nem disse isso assim, com todas as letras. Mas eu percebi que ela investiu todas as suas energias para que eu ficasse bem.

Meu primeiro vínculo de amor foi com ela. Era, e ainda é, recíproco: ela me ama apaixonadamente. Me acha lindo, maravilhoso! Que sorte, a minha: ser exatamente o filho que ela queria ter! Digo sorte porque nem sempre é assim.

Papai também me ama muito, mas de um jeito diferente dela. Ele sabia que mamãe cuidaria da minha sobrevivência física e emocional, então se sentia mais ou menos livre dessa tarefa, e podia se dedicar a todo o resto, que não é pouco. Como eu não dependo tanto dele, nossa relação sempre foi mais fácil. Por exemplo, quando me machuco um pouco, se mamãe está por perto, abro um berreiro. Mas quando é ele que está lá, eu aguento sem chorar. Ou na hora de comer, ou de tomar banho: com ela sempre foi mais complicado do que com ele.

Eu falei em amor por mamãe, mas era paixão! Porque quando a gente é pequeno, todas as emoções são muito intensas – tão intensas que nem cabem dentro da gente. Paixões são difíceis de administrar, por isso as coisas eram mais complicadas com ela. Não é fácil depender tanto de uma única pessoa. Eu amava minha mãe, mas também detestava ela ser dona de todo o poder, e eu, nenhum. Enfim, nossa relação não era só flores: na verdade, era bem ambivalente.

Então, muitas vezes eu tinha que tentar mostrar que eu também mando, e exigia que ela fizesse tudo o que eu quero. Ou ao contrário, precisava mostrar que ela não era tão importante assim. Ou fazia ela se sentir culpada por não atender integralmente às minhas necessidades. Ou então eu a provocava, queria ver ela sair da casinha, não ser tão perfeita, e se descabelar como eu. Era também um jeito de extravasar minha fúria contra ela. Fúria, sim, porque como eu disse, meus afetos eram sempre muito intensos.

Acontecia também de eu transferir a fúria que eu sentia por mamãe, para papai. Era um bom jeito de resolver minha ambivalência: só um amor lindo por mamãe, e a parte turbulenta da nossa relação sobrava para ele. Coitado, ele nem é tão bravo, mas quando eu fazia isso, ficava com muito medo da fúria dele. E às vezes era o oposto: eu podia amar livremente papai porque toda a parte difícil – todo o medo, toda a raiva – ficava mais com mamãe.

Nessa época eu adorava as histórias que envolviam o lobo mau. Olha só que maravilha: conforme o momento, mamãe e/ou papai eram o lobo mau. Ele funcionava, e ainda funciona, como uma espécie de para-raios. Sim, porque ele atrai meus sentimentos mais perturbadores. E também porque eu podia comentar livremente como “ele” é feio e malvado; e como tenho medo “dele” porque come criancinhas. Eu podia me vingar e matar ele sem sentir culpa, porque afinal ele era mau e merecia. E também podia abrir a barriga e resgatar vovó, ou os sete cabritinhos, ainda vivos: era um alívio ver que, no final, tudo acabava bem, com o lobo bem morto.

Graças a essas histórias, eu conseguia dar forma, e “ver” lá fora, na história, aquilo que eu sentia aqui dentro: raiva e medo do poder e da “força selvagem” do papai e da mamãe. E isso me ajudou, e continua me ajudando, a administrar a ambivalência em relação a eles. Que bom que o lobo mau existe!

Tive muita sorte porque durante todo esse tempo mamãe e papai deram conta do recado. Os dois aguentaram a maior parte das turbulências e ambivalências. Podiam ficar bravos, mas não demais. Quando percebiam que eu precisava deles, continuavam lá, inteiros, firmes e amorosos. Me mostravam que me aceitavam de volta depois das brigas; que não guardavam rancor. Seria horrível se me castigassem o tempo todo.

Enfim, tudo isso me ajudou a ir crescendo num ambiente suficientemente bom e acolhedor. Faz pouco tempo, completei 6 anos.

Agora estou diante de novos desafios para o problema de sempre – e que continua atormentando muitos adultos: como voltar a ser totalmente feliz, como quando eu era bem bebezinho, e não sentia falta de nada? Ou até antes, quando eu estava na barriga da mamãe? Acho que isso só vai acontecer quando tiver mamãe inteirinha só para mim.

Tenho certeza de que, quando isso acontecer, vou explodir de felicidade. Sabe como eu sei disso? Porque quando mamãe me põe na cama para dormir, eu sinto uma felicidade imensa. Estamos juntinhos, só nós dois; eu digo que gosto muito dela, e ela também diz isso para mim. E, como você sabe, a paixão correspondida é simplesmente a maior felicidade do mundo! Para conseguir curtir plenamente o momento, eu até esqueço que, assim que eu adormecer, ela vai ficar com papai. Para não ficar com raiva dela, esqueço que vai me trair. Sem querer, mas querendo, deleto a existência dele, e tudo bem. Mas hoje ouvi uns barulhos na sala. Será que era ele? Pai?

Pronto, papai estragou tudo! Fiquei furioso com ele. Queria tanto que ele não existisse! Como você sabe, papai e mamãe escutam meus desejos mais secretos – e mais proibidos. Será que ouviu que eu desejava que ele não existisse? Eu quis isso com tanta força, meu desejo fez tanto barulho, que tenho certeza que sim. E com certeza não gostou nem um pouco. Quis conferir se ele tinha escutado mesmo: pai?? Imaginei que, assim como eu estava furioso com ele, ele também estava furioso comigo. Fiquei com medo.

E o medo que estava sentindo naquele momento acordou o medo de antes, aquele de quando eu era menor. Assim como antes o lobo era mamãe-engolidora, agora ele era o papai-bravo. Foi por isso que eu disse para mamãe: “tenho medo do lobo mau”. Era difícil explicar para ela que passado e presente se misturaram na minha cabeça graças a um elemento comum: o medo.

Marion Minerbo é psicanalista da SBPSP. 

Imagem: Shutterstock (n. 1673353684)

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.     



Comentários

4 replies on “Papai adivinhou meu desejo!”

Maria Silvia Tibiriçá disse:

Como todos os textos e livros de Marion Minerbo, são tão ricos, porque lidam com a subjetividade de uma forma clara e esclarecedora.

Adriana Uchôa disse:

Hj minha neta de 8 anos me disse quando fui buscá-la na escola, que estavam saindo pelo outro portão – como forma de reforçar a segurança na escola, depois dos trágicos acontecimentos, porque tinha um homem mau querendo fazer mal para as crianças. Olhei com pena para ela sem saber o que dizer e pensei: melhor era o tempo em que o medo era só do lobo mau!
Linda história Marion. Que as nossas crianças voltem a se encantar com as histórias infantis!

Nirã Valentim disse:

Que texto mais bonito, Marion! De uma sensibilidade incrível, explicando o conflito edípico de uma forma tão compreensível, mas guardando toda sua complexidade.

marina de oliveira costa disse:

Como é difícil compreender e sentir esses emaranhados de fios de cobre que vão ligando passado e presente e fazendo de nós a mistura que somos hoje! E como a arte importa na dissolução desses nós! podemos ouví- los na música, desatá-los nos movimentos da dança, investigá-los na escrita fantasiada dos personagens, enxergá-los nas tintas derramadas das telas…mas que ninguém se iluda, não é fácil pacificá-los, uma vez acordados, temos que recebê-los em casa.

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