Quarta-feira de manhã
Home Blog adolescência Quarta-feira de manhã* Pedro Colli Badino de Souza Leite
– Oi.
– Oi.
– Essa noite eu tive aquele sonho de novo.
Eu o conheço, já nos vimos algumas vezes, mas, apesar do meu esforço, ainda não consigo me lembrar de sua história ou de seu sonho repetido.
– Você me conta o sonho de novo?
– Eu sonhei que estava preso aqui mesmo, na Fundação [Casa], e eles tinham comprado espelhos pra pôr nos quartos. Mas quando eu me olhava, eu não tinha um rosto. Fiquei assustado e acordei.
Qual a prioridade desse rapaz ao me ver novamente depois de um mês? Falar sobre o seu sintoma? Sobre a medicação? Sobre as terríveis condições de sua internação? Sobre sua realidade socioeconômica, um pesadelo desperto? Sobre seus crimes, seu envolvimento com facções criminosas? Nada disso. Sua prioridade é me abraçar e me contar um sonho. O efeito da narração é imediato, a imagem que tenho dele se torna um tanto mais consistente e uma série de memórias sobre sua história passam a emergir dentro de mim. Respondo a partir do local onde fui colocado:
– Agora eu me lembrei do seu sonho. Por que você acha que ele se repete tantas vezes?
-Sei lá, talvez ele esteja me mandando alguma mensagem.
-Qual mensagem?
– Não sei… (algum tempo em silêncio). Essa semana eu estava vendo de novo uns episódios daquele seriado que eu gosto, aquele dos tronos, sabe? Então, tem uma parte que eu gosto bastante, é sobre uma menina que perde os pais e tem que se virar sozinha, esqueci o nome dela. Ela encontra uma grupo de assassinos que dão casa e comida pra ela, e que começam a treinar ela pra ser uma assassina também. Eles acreditam no Deus de Muitas Faces, que é um deus da morte. No treinamento, ela tem que esquecer que ela é ela, que ela tem um nome, que ela tinha pais, que ela tinha irmãos e amigos. Ela tem que se tornar Ninguém pra depois poder se disfarçar com qualquer identidade que ela queira. Esse é o melhor jeito pra poder se aproximar dos outros e matar quem precisa ser morto. Nesse treinamento, o mestre dela fica perguntando: “Qual é seu nome?”; ela responde: “Eu não tenho nome”. Daí, se ele acha que ela não acredita no que está dizendo, ele a espanca e diz que ela ainda acredita que é Alguém. E daí…doutor, posso tirar minha blusa, tô com calor…
– Sim, claro.
Nos outros ambientes da Fundação ele não pode tirar a blusa, deve ficar uniformizado com o moletom azul comum a todos os adolescentes. Do meu ponto de vista, tal uniformização contribui bastante com o Deus de Muitas Faces. Ele tira a blusa e por baixo veste uma camiseta de mangas curtas. Tem braços fortes e os apoia sobre a mesa, na minha direção. Suas tatuagens se fazem presente ao meu olhar.
– Você tem muitas tatuagens.
– Ah, é verdade, quer saber o que elas significam?
– Sim.
Ele começa a descrever os significados das tatuagens, uma a uma, e penso que elas poderiam ser reunidas em dois grupos diferentes. O primeiro grupo representa o processo de despersonalização. Tornar-se Ninguém, ser eficiente dentro de um grupo criminoso, adorar o deus da morte. Ele fala, um tanto desafetado:
– Essa aqui significa que sou membro do grupo P. Essa aqui significa que um policial está cercado por quatro bandidos e que ele vai morrer. Essa aqui significa paciência para que o crime possa ser premeditado com frieza. Essa aqui significa que a vida é só um jogo, como um jogo de cartas ou de dados, então tanto faz viver ou morrer. Essa aqui significa o tráfico de drogas. Essa aqui…não, essa aqui deixa pra lá. Essa outra aqui significa…
– Espera, por que você pulou essa aí?
– Ah, é porque essa é triste, essa é pra lembrar de um amigo meu de infância que morreu no crime. A gente era muito parça [parceiro].
Ele se entristece, seus olhos ficam marejados. Ele tenta engolir o choro e continua a falar sobre o primeiro grupo de tatuagens. Tenta fazer a raiva triunfar sobre a tristeza mas já não consegue, começa a chorar bastante. A tatuagem do luto de seu parça é representante do segundo grupo. São tatuagens que erguem um espelho diante de si e lhe mostram que ele ainda acredita ser Alguém. Também nesse grupo estão tatuados: o nome de sua filha, o nome da sua mãe, o nome da sua avó, o nome das suas irmãs e irmãos (não há o nome do pai, e também nunca houve um pai), uma estrela que representa a mulher que ama (ele não sabe que ainda a ama, ficou revoltado com o afastamento dela depois de seu terceiro crime, mas fala dela quase o tempo todo quando conversamos), o time de coração (aquele que sabe ser o mesmo time de seu avô materno), uma lágrima tatuada logo abaixo do seu olho que significa a tristeza provocada em quem está lá fora.
O tempo da consulta já se esgotou há muito tempo, ouço vozes do lado de fora que estão interrogando sobre meu atraso. Apesar da pressão, sustento o espaço para que meu paciente possa elaborar um pouco mais em silêncio. Enquanto isso, reflito sobre o longo caminho que percorremos até aqui. De início, meses e meses diante de graves sintomas psiquiátricos e repetidas atuações autodestrutivas, até que um sonho pudesse ser constituído. Dali, mais uma travessia até hoje, quando o sonho repetido ganha significados que possam ser falados e escutados. E daí em diante não sei, veremos. Mas quando se sonha ser Ninguém, já não se é Ninguém. Neste momento, ele é Alguém que sonha ser Ninguém, e aqui se apresenta uma das potencialidades fundamentais do trabalho psicanalítico. A possibilidade da Fundação de uma Casa psíquica.
Este texto é um recorte do artigo “Quarta-feira de manhã”, publicado na Revista Brasileira de Psicanálise [Volume 51, n. 4, 107-21 · 2017]. O autor trabalhou por alguns anos como psiquiatra de adolescentes internados em diversas unidades da Fundação Casa. Invadido e pressionado por memórias daquele período, o trabalho da escrita se mostrou útil para elaborar suas experiências
Pedro Colli Badino de Souza Leite é membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, psiquiatra pelo IPq-HCFMUSP e supervisor de médicos residentes em psiquiatra no estágio de psicoterapia.