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Revisitando Adão e Eva

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* Susana Muszkat

Um dos principais mitos constitutivos da cultura ocidental, repetido sem qualquer constrangimento ou questionamento, é o de Adão e Eva. Adão, idealizado e produzido por ninguém menos do que Deus, é criado à sua imagem e semelhança! Para apaziguar seu tédio solitário, de um pedaço de sua costela – região sem qualquer nobreza especial – é feita Eva, com quem, então, inaugura a espécie humana.

É notável tal versão inaugural da humanidade, na qual uma inversão absolutamente naturalizada retira da mulher sua condição de quem gesta e pare sujeitos, e torna-a um ser gerada do e feita para o homem.

Que consequências subjetivantes terá esse mito fundante exercido em nossa cultura? Ou será que a própria construção do mito é reveladora dos desejos e lugares atribuídos a uns e outros?

À mulher caberia estar a serviço do homem? Seria uma categoria humana secundária à masculina? Ou o mito apontaria, ainda, para outra inversão – esta, podemos dizer, de cunho reparador: a de que o homem fálico e autossuficiente não se sustenta, sendo a introdução da mulher em sua vida não a prova do poder de Deus a serviço do gozo masculino, mas sim a constatação da fragilidade humana e sua dependência de um outro para sobreviver e criar descendentes? Enfim, teria nosso mito civilizatório comprometido gravemente a condição mesma de civilidade, ou seria sua formulação o indicador dessa impossibilidade?

Freud, ainda distante do atual debate de gênero, mas, não neguemos, já trazendo subsídios, refere, no artigo “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna” (1908), um filósofo e psicólogo de nome Von Ehrenfels. Cito-o: “Não é arriscado supor que sob o regime de uma moral sexual civilizada, a saúde e a eficiência dos indivíduos esteja sujeita a danos, e que tais prejuízos causados pelos sacrifícios que lhes são exigidos terminem por atingir um grau tão elevado, que indiretamente ‘cheguem a colocar também em perigo os objetivos culturais’”. E mais adiante, “No entanto, ‘as diferenças naturais entre os sexos’ impõem sanções menos severas às transgressões masculinas, tornando mesmo necessário admitir uma moral ‘dupla’”.

Qual será essa dupla moral sexual em que o desejo de poder (fantasia de antídoto contra o desamparo e impotência) autoriza uns à objetalização e/ou desqualificação de outros, transformando-nos todos em qualquer coisa menos civilizados?

Durante mais de dez anos trabalhando numa ONG cujo objetivo era a reflexão sobre lugares e papéis de gênero, coordenei grupos de discussão de homens envolvidos em algum tipo de violência praticada contra mulheres. Tais atribuições de lugares e papéis têm, como consequência, que muitas das violências praticadas no âmbito familiar se mantenham e/ou justifiquem, sustentadas nessas mesmas atribuições, ganhando caráter normativo. Ou seja, a construção das identidades de gênero, no mais das vezes, está ligada à ideologia predominante vigente num determinado grupo social, e diretamente relacionadas aos preconceitos, definindo como se deve ser naquele grupo particular. Essas ideias, não nos deixemos enganar, são partilhadas e perpetuadas tanto por homens quanto por mulheres, adquirindo força controladora e aprisionadora dos sujeitos.

Podemos pensar que a perpetuação da dupla moral, que é expressa na disputa pela manutenção de lugares de poder, seja a manifestação disfarçada do temor ao desamparo e à impotência. A eterna busca de completude narcísica às custas de um outro, feito de bode expiatório.

Respostas violentas de homens em relação às suas companheiras, assim como contra gays, trans e todas as identidades não-heteronormativas, apontam para valores vigentes em nossa cultura, em que o sentimento de humilhação, para muitos, não pode ser admitido como algo do universo masculino. A resposta violenta visa o resgate imaginado da autoestima por meio de uma demonstração de poder sobre a mulher, condição entendida como essencial e natural para a manutenção da virilidade dentro do sistema de valores predominante em nossa cultura.

Venho afirmando há alguns anos que, inversamente ao que possa parecer, a necessidade de manutenção de dominação e de poderes fixos constituídos não representa uma condição de poder; pelo contrário, revela a falta do mesmo. Em trabalho anterior, cunhei a expressão “desamparo identitário” para definir um tipo de violência que é praticada não como resultado de sentimento de força e poder de um sobre o outro, mas em função de um sentimento muito desnorteador de precariedade pessoal, de fracasso, de perda de identidade. Assim, o ato violento visa, de forma efêmera e enganosa evidentemente, recuperar o sentimento de virilidade, definido por qualificadores como força, poder e superioridade, que, por sua vez, são traduzidos como elementos definidores da masculinidade. Trocando em miúdos, alguém cuja única fonte garantidora de autoestima é sua posição de superioridade em relação a um outro precisa acreditar que esse outro tenha menos, ou nenhum valor. Dentro da cultura predominante de masculinidade hegemônica, essa crença pode ser sustentada sem muito questionamento… até recentemente, pelo menos. Isso vem mudando!

Há um outro tipo de violência, praticada de maneira mais prevalente por homens, que se confunde ao pensar-se “autorizada” pela cultura de masculinidade hegemônica: a violência perversa.

Proponho aqui minha leitura sobre esse fenômeno: o primeiro objeto de amor do bebê é, via de regra, a mãe. Mas o que chamamos de amor nessa fase da vida não é exatamente o tipo de relação amorosa que conhecemos quando nos tornamos adultos. O bebezinho não percebe que sua mãe é outra pessoa, diferente dele. Sente, isto sim, que a mãe é um objeto de sua propriedade, sua extensão, que está onde ele o deseja, como já teorizado pelo psicanalista inglês, de bebês e crianças, Donald Winnicott.

A “mãe suficientemente boa”, expressão cunhada por ele, presta-se a ser esse objeto que atende às demandas do bebê. Trata-se de um estado de ilusão necessária na vida precoce do bebê. À medida que cresce, se tudo se der de maneira satisfatória em seu desenvolvimento, a criança, e depois o adulto, deve ser capaz de entender que aquela pessoa, sua mãe, é um sujeito diferente dele, com desejos e mente próprios. Entendendo isso, ele deverá, então, ser capaz de tolerar a frustração de abdicar da mãe como um objeto que lhe pertence, depois como objeto de amor propriamente dito e, finalmente, escolher outra pessoa, um/a companheiro/a, com quem poderá ter uma relação de trocas e parceria amorosa.

Desse modo, se na infância precoce de todo ser humano é natural e desejável que a mãe se preste a ser objeto do desejo do bebê, na vida adulta a perpetuação desse tipo de comportamento configura perversão. Perversão é o ato de transformar outra pessoa, com singularidade própria, em objeto de uso de prazer pessoal, sem o consentimento dela. Ao fazer isso, a pessoa é destituída de sua condição de sujeito e tratada como objeto. Esse é exatamente o caso de todos os atos onde mulheres, meninas ou qualquer pessoa em desigualdade de poderes são colocados em situação de objeto, a serviço do desejo exclusivo de alguém, sem que sua condição de sujeito de direito e mente própria seja reconhecido.

Ainda, o modelo de sociedade patriarcal, que autoriza o homem a funcionar regido pela pulsão infantil – embora travestido de adulto –, sustenta e mantém esse código perverso de violência endêmica contra mulheres. Ou seja, leva o homem adulto a confundir-se e acreditar que a mulher – representante da mãe arcaica, aquela mãe da primeira infância – lhe pertence.

Ainda, em tempo: vale ressaltar a brutal defasagem dos lugares atribuídos a homens e mulheres no imaginário cultural, que não correspondem às práticas sociais de fato. Estatísticas revelam que metade da força de trabalho do país é composta por mulheres, sendo elas mesmas as responsáveis exclusivas pelo sustento de quase metade das famílias brasileiras.

É imprescindível que revisitemos e debatamos o mito de Adão e Eva!

Susana Muszkat é psicanalista e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

CRÉDITO: Parte do dossiê “Cartografias da masculinidade”, este texto foi publicado na edição 242 da Revista CULT, em Fevereiro de 2019. A edição impressa está disponível para compra na loja online da revista: https://www.cultloja.com.br/produto/masculinidade-cult-242/.

 



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