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Sobre a dor em Psicanálise

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Hannah Arendt (1968), em uma homenagem prestada a Isak Dinesen (pseudônimo da escritora dinamarquesa Karen Blixen, 1885-1962), citou o que a romancista dissera sobre a dor: “todas as dores podem ser suportadas se você as puser em uma história ou contar uma história sobre elas.” (p.115).

A dor é constitutiva da espécie humana, desde a função biológica protetora contra a automutilação, até a condenação divina à mulher pelo parto doloroso, ou mesmo pela referência à dor e ao sofrimento presentes na cultura, arte, religião. Assim, a dor sempre esteve presente nas formulações humanistas em geral e em particular, na Psicanálise, pela possibilidade de transformação, por meio da simbolização, das vivências humanas geradoras de sofrimento de modo a lhes dar sentido.

Segundo Fleming (2003), a distinção entre dor física e psíquica talvez seja um tanto artificial. Toda experiência de dor física traz repercussões psíquicas do mesmo modo que o sofrimento psíquico é também acompanhado por sensações corporais. É um problema complexo: dor física e dor mental, que remete para uma questão de grande pertinência que é a continuidade versus descontinuidade psiquismo-soma, o que observamos no percurso freudiano. Segundo a mesma autora, Freud introduziu o conceito na literatura psicanalítica como “dor na alma” (Seelenschmerz) e no Projeto (1895) passou a distinguir dor e sofrimento, dor e desprazer, dor e angústia, bem como a ligação entre dor e desamparo. Para ele, a dor primordial é a condição de desamparo do bebê humano. Ao abandonar o Projeto e a concepção quantitativa, Freud passou a se dedicar ao estudo da angústia. Em Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental (1911), ele se pergunta de que depende a capacidade de tolerar a frustração; em Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914), aborda o investimento na dor corporal. Em Luto e Melancolia (1917) abordará a dor relacionada à perda do objeto amado. Mais tarde, em Mais Além do Princípio do Prazer (1920), Freud retoma a concepção quantitativa entre dor e prazer, bem como em O Problema Econômico do Masoquismo (1924). Finalmente, em Inibição, Sintoma e Angústia (1926), utiliza a noção de dor interna e traz novas concepções teóricas, ao diferenciar dor corporal, narcísica, da dor mental, envolvida em uma relação de objeto e há um consenso de que a dor seja simultaneamente um fenômeno psíquico e somático.

De fato, a dor é o que leva uma pessoa à procura de análise, é o que promove a formação de sintomas, pela impossibilidade de suportar a dor. Para McDougall (1991): “é a dor e o mal-estar psíquico que constituem a dimensão fundamental do nosso campo de observação e de exploração cotidiana” (p.152).

O conceito de dor mental tem adquirido maior importância na teoria e na clínica psicanalítica, principalmente em função da contribuição de Bion (1963), que considera dor psíquica um dos elementos de psicanálise- a caixa de ferramentas do psicanalista, bem como a capacidade de continência e tolerância à dor, um dos pilares do desenvolvimento do indivíduo. Esta ideia não é do senso comum, é até contrária e nos defrontamos com isso em nosso trabalho clínico e em nós mesmos.

A dor psíquica é considerada como inerente ao crescimento da personalidade. Bion (1963) assinala: “A dor não pode ser ausente da personalidade. Uma análise é dolorosa, não porque haja necessariamente qualquer valor na dor, mas porque uma análise na qual a dor não é observada e discutida não pode ser considerada como se estivesse lidando com uma das razões centrais para a presença do paciente.”  (p.62).

Bion empresta uma grande importância à dor psíquica, no sentido de que mais do que sentir a dor, é necessário sofrê-la, para poder vir a aprender com as experiências emocionais, no sentido de poder estabelecer correlações, reflexões e elaborações.

Todo indivíduo em geral, e particularmente o paciente na situação analítica, enfrenta duas alternativas diante da dor ocasionada pelas múltiplas formas de frustrações: ou ele foge da dor com alguma tática evitativa e evasiva, ou ele experimenta sensações dolorosas, tira um aprendizado com a experiência e isso o capacita a fazer transformações e modificações dos fatos frustradores. Para Bion, uma análise deve necessariamente ser dolorosa, não porque a dor em si tenha algum valor, mas sim porque esta dor já pré-existia no paciente e justamente ele procurou a análise para se ver livre dela. Pelo contrário, a experiência analítica deveria aumentar a “capacidade de sofrer” do paciente (suffering) e não, é claro, aumentar a quantidade de dor, pela dor em si (pain).


Bibliografia

Arendt, H. (1968) Homens em Tempos Sombrios. Cia. das Letras, São Paulo, 2008, p.115.

Bion, W.R. (1962) Learning from Experience. London: W. Heinemann Medical Books

Bion, W.R. (1963) Elements of Psycho-Analysis. London: W. Heinemann Medical Books.

Fleming, M. (2003) Dor sem nome – Pensar o sofrimento. Porto. Ed. Afrontamento.

Freud, S.; Breuer, J. (1983) Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos: Comunicação Preliminar. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. R.J. Imago,1988, vol. II, p.39-53.

Freud, S. (1985) Projeto Para uma Psicologia Científica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. R.J. Imago,1988, vol. I, p.347-397.

Freud, S. (1911) – Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. R.J. Imago, 1988, vol. XIII, p.237-248.

Freud, S. (1914) Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. R.J. Imago,1988, vol. XIV, p.81-108.

Freud, S. (1917) Luto e Melancolia. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. R.J. Imago,1988, vol. XIV, p.275-292.

Freud, S. (1919{1918}) Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica (1919{1918}), vol. XVII, Obras Completas, Ed. Standard Brasileira, p.180.

Freud, S. (1926) Inibição, Sintoma e Angústia. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. R.J. Imago,1988, vol. XX, p.81-171.

Norma Lottenberg Semer é membro efetivo e docente da SBPSP. Psicanalista de crianças e adolescentes pela IPA. Doutora em Saúde Mental pela UNIFESP. Membro da Atual Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP.

Imagem: Melancolia – Edvard Munch, 1911 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.     



Comentários

4 replies on “Sobre a dor em Psicanálise”

Lucia de Fátima Taveira disse:

Forma clara de colocar em palavras algo que é tão difícil de falar, sentir e transformar…. a dor…. seja a nossa ou a do paciente….
Um texto para se ler várias vezes!!!
Obrigada!!!

Norma Lottenberg Semer disse:

Obrigada pela sua leitura atenta bem como pela sua apreciação!

Leda Beolchi Spessoto disse:

Sucinto e essencial. Parabéns pelo texto Norma.

Marta Foster disse:

Querida Norma, excelente texto!! Aborda de forma clara questões tão difíceis. Também gostei da forma como “passeou” pelas várias teorias, trazendo-nos uma riqueza bibliográfica sobre o tema.
Parabéns!!
Marta Foster

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