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Sobre-humanos

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*Adriana Rotelli Resende Rapeli

Recebi de meu filho mais novo uma mensagem: ele estava de luto pois Stan Lee, criador de super-heróis da Marvel, havia morrido aos 95 anos. Sei que ele tem gostado mais de Homem -Aranha. Como se fosse o próprio, cruza os prédios da grande cidade nos vertiginosos movimentos que o videogame lhe proporciona. Ele também está na fase de sua vida em que, como Peter Parker, ouve do tio: “Quanto mais poderes, maiores responsabilidades”. Vestir o traje de adulto, lançar suas teias e expandir seus domínios (sair da casa dos pais e da cidade natal, entrar na faculdade, escolher profissão, tirar sua habilitação de motorista, escolher outros amigos, namorar) é mesmo quase sobre-humano.

Os super-heróis de Stan Lee não são mera diversão. São pura diversão, aquela que não nos tira da realidade, mas como boas ficções, nos ligam à nossa realidade interna por outros caminhos. Parábolas para nossos próprias percalços, metáforas de nossa desafiante aventura de viver e de nos apossarmos de nossas capacidades e nossas fraquezas. A aventura de viver e assumir os riscos de existir com sua individualidade, nossa criatividade é a originalidade com que cada um desenvolve o que traz em si potencialmente.

Os heróis humanizados, como qualquer adulto, têm responsabilidades e ações consequentes. Eles são capazes de perder e ganhar, caírem muitas vezes e se levantarem –  talvez por isso, na ideia freudiana de um superego mais integrado, eles são capazes de rir e fazer rir. Eles têm o superpoder do bom humor, de rir de si mesmos, a capacidade de existirem apesar e por causa de suas diferenças: são aranhas, formigas ou panteras, são verdes ou negros, são feitos de pedra ou de ferro, são deste ou de outro planeta, são invisíveis, ou mudam de forma, viram fogo, voam, são estranhos ou são só o Coisa.  A possibilidade de identificação é gigantesca, a inevitável referência com o mundo globalizado que tem em sua sociedade – não só a americana –conflitos e a convivência democrática decorrentes da diversidade social e de raça, gênero e talentos. Ganhos e perdas de uma guerra infinita: o mundo eternamente precisando de salvação.

O dia que Stan Lee morreu foi o dia em que também fui assistir ao “Bohemian Rhapsody”, uma biografia de Freddie Mercury, o músico vocalista da banda de rock Queen. De ascendência paquistanesa – parsis que foram para a Índia – Farrouk Bulsara, nascido na África, estudou em Bombaim, tendo depois fugindo da guerra da Tanzânia e migrado para Inglaterra, para o subúrbio de Londres. Além de talentoso, era gay. São muitas as suas diferenças que Mercury ativamente se coloca e pode viver a excentricidade como talento de falar aos outros, de se mostrar no centro do palco como objeto de identificações.

A voz poderosa, seus gritos e gestos hiperbólicos marcam sua diferença que parece ter sido assumida com a força ativa do querer. Assenhorando-se dela, como majestade, o vôo de Mercury –  como o deus mitológico Hermes/ Mercúrio precisou ser mais rápido que os colegas de sua banda. Estes, também geniais, criativos, mas vindos socialmente de uma maior estabilidade, ingleses que estudavam engenharia, odontologia… Sim, todos eles precisaram pôr os pés na estrada e criaram um mundo em que as diferenças se fertilizam em arte.  É tudo fantasia ou a vida real?

De qualquer modo, fidedigno ou não aos fatos, o que se mostra no filme é que a performance musical da banda não é um escape à realidade. O processo criativo que culmina na música título do filme, por exemplo, é uma aventura que vai da lama criativa à fama. E nos divertimos com a confecção da colcha de retalhos que a música- eclética mistura de rock, ópera e o que mais vier – celebra em sua diversidade rítmica e sonora.  No meio de tudo, um filho que grita o perdão da sua mãe por ter se perdido no início de sua vida, despede-se do passado e encara a verdade.  “Is this real life? Is this just fantasy?”. 

Nosso herói, demasiado humano, sai da epopeia e entra na tragédia. Depois de também, como Peter Parker, ter sua Mary, ser o maior entre os seus, ele vive o drama de perder- se de si mesmo e fazer o penoso caminho de se reencontrar. Então, faz o caminho inverso agora da fama à lama, da adoração ao escárnio, do sucesso planetário à impotência diante de um vírus fatal. Indefeso, sofrendo da falta de imunidade, em sua via crucis, ele morre de seus próprios poderes. Nosso herói, como o nosso Cazuza fez e cantou, morre de overdose do mesmo vigor que lhe fez um rei. Como Freud nos lembra de nossas entidades míticas, Eros e Thânatos nos habitam, aqui e ali travam conflitos mortais.

Quando Queen e Freddie Mercury ficaram conhecidos mundialmente nos anos 1970 e 80, eu própria engatinhava nos passos que hoje meu filho faz e fui embalada pelo maestro da multidão que cantava que éramos todos os campeões. Viver é perigoso, dizia o herói do grande sertão de Guimarães Rosa. Como um homem comum, recuperado em sua humanidade, depois das multidões lhe aclamando, ele só precisa do prêmio de um amigo, de um amor. Afinal,  “é sobre-humano amar, sentir, doer, gozar, sentir, ser feliz”.[1]

[1]  Mais Simples,  canção de José Miguel Wisnick, de 1993, gravação de Zizi Possi, no CD Mais Simples, de 1996.

 

REFERÊNCIAS

  • FREUD, S. Além do Princípio do Prazer (1920). In: _-. Edição standard das obras psicológicas completas, vol. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, 1996
  • ________ O humor (1927). In: _-. Edição standard das obras psicológicas completas, vol. XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1996
  • ROSA, J.G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
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Adriana Rotelli Resende Rapeli é psiquiatra e psicanalista.

 



Comentários

One reply on “Sobre-humanos”

Fátima colli disse:

Excelente

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