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Transtornos Alimentares

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Os distúrbios alimentares figuram entre as patologias psiquiátricas que vêm apresentando maior crescimento em termos de incidência na população. Quem já se aproximou desse universo talvez tenha constatado a sua gravidade, em termos dos prejuízos físicos, psíquicos, afetivos e sociais. Não é apenas o corpo que se torna anoréxico. Todo o psiquismo adoece no sentido da perda de vitalidade, de apetite e do prazer. Sobre esse complexo tema, vale conferir a entrevista com a psicanalista Marina Ramalho Miranda*, que vem se dedicando ao estudo do tema.

Como a psicanálise entende e avalia o recente crescimento na incidência de casos de transtornos alimentares (TA’s)?

Embora os transtornos alimentares, entre eles, as anorexias e as bulimias, sejam novas vestes para antigas patologias, não há quem não perceba esse aumento da sintomatologia em nossos dias.
Tanto na literatura sobre o tema, quanto em minha experiência, existe uma concordância de que uma multiplicidade de fatores combinados é responsável pelo surgimento dos transtornos alimentares e penso que quando pesquisamos sobre o aumento na incidência deles em nossos consultórios, hospitais e serviços de saúde mental, temos que considerá-los em conjunto.

Os fatores que compõem a etiologia dos transtornos alimentares são os constitucionais (genéticos e biológicos), psicológicos (intra-psíquicos), familiares e sócio-culturais.
Pensemos juntos, em que tempos vivemos, atendo-nos nesse início de conversa a essa dimensão.
Como um dos temas prediletos da atualidade, o corpo reina absoluto quando se conjectura sobre o tão falado trinômio juventude-beleza-saúde, pondo em risco a dimensão da mente, ou seja, corpo e mente que deveriam estar juntos e em fluente integração começam a ficar destacados um do outro, e o corpo (e seus correlatos, como a sua nutrição, aspecto, vestimentas, etc.), gradativamente assume uma posição-alvo de exigências de perfeição e controle, sem que as pessoas se dêem muito conta dessa dinâmica de hipervalorização .

Este cenário cria uma espécie de “inter-patrulhamento” da aparência física, e, em particular, no que diz respeito ao volume corporal (será que estão implícitos nessa preocupação questionamentos a respeito do espaço e lugar que ocupa no mundo?) Daí, o próximo passo recai sobre a alimentação. As mulheres, mais do que os homens, são afetadas e fiscalizadas na difícil missão de manter um corpo eternamente jovem, belo, saudável e… magro! Dietas severas de emagrecimento proliferam em todos os cantos e discursos e acabam por ficarem misturadas com a solução para o alcance não só do corpo magro e aceito, mas da felicidade e sucessos almejados.

A psicanálise entra na roda nesse momento, em que a comida e a alimentação perdem seu sentido de combustíveis para a vida, deixam de estar a serviço do viver e como num espiral estonteante entram numa alquimia culinária e se transformam em emoção, medos, horrores, enfim toda sorte de afetos. Ela mergulha na especificidade dos vínculos familiares de cada paciente atendida, especialmente na relação entre as mulheres, nutridoras por natureza, mãe-filha-irmã (muitas vezes a avó também participa, contribuindo para o trabalho), coadjuvantes essenciais do processo psicanalítico, pois temos hipóteses de que esses vínculos já vêm sofrendo dificuldades antigas na troca afetiva, tornando-se mais vulneráveis e porosos às influências do emocional ambiental .

Em termos gerais, na anorexia e na bulimia surge a declaração de uma guerra contra a gordura, que passa a ser a principal vilã de suas vidas. Na obesidade, a comida pode ocupar o lugar da falta, preencher um vazio, amenizar um vácuo que nada tem a ver com a comida em seu sentido concreto, saciar uma fome que vem de outros lugares (ou não-lugares), territórios a serem explorados em companhia.

Mary Del Priore (2000), historiadora, defende a ideia de que hoje a história das mulheres passa pela história de seus corpos e com humor, observa:
“Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho.”

Há, entre os médicos, uma controvérsia sobre a psicanálise ser um método indicado para tratar pessoas com TA’s. Qual a sua posição? Pela sua experiência clínica, a psicanálise pode ser um método efetivo?

Constato, a partir de meus estudos teórico-clínicos e das inúmeras pesquisas que encontramos na Universidade e na SBPSP, e especialmente, a partir da experiência clínica de atendimento à(o)s pacientes e sua família, que o tratamento psicanalítico dos transtornos alimentares não só é indicado, mas completamente imprescindível. Sustento a ideia de que a presença do psicanalista integrando a equipe multidisciplinar de atendimento abre frestas no mundo hermético dos transtornos alimentares, favorecendo a revisitação e o exercício da linguagem falada, reaproximando essas mentes sofridas e danificadas pela força de defesas destrutivas que as isolam e enclausuram, reconduzindo-as ao mundo da interação fértil. A viva troca nutritiva que a presença e a linguagem instauram conduz ao reino do pensamento simbólico, ao reino do sonhado e do imaginado, tão inibidos no universo dos transtornos alimentares.

Será o psicanalista que irá oferecer uma escuta que se concentra na investigação do que não pôde ser dito ou do que não pôde ser ingerido (ou absorvido em excesso), do que não aparece (ou do que desnuda), do que está interditado (ou do que transborda) permanecendo desconhecido e estranho à compreensão do paciente, que por sua vez se alivia ao descobrir que seus sintomas não serão vistos como doença e sim como sinais indicativos de que algo muito sério aconteceu em algum momento de sua vida, alterando o rumo de desenvolvimento a ser seguido. A(o) paciente fala pelo corpo e com o corpo. O comer o nada ou o tudo devorar, o vomitar e expurgar são tomados como pistas a serem seguidas ou como rastros de conteúdos emocionais brutos, contraditórios, que entraram intrusivamente em seu interior e pedem para serem remastigados. A abordagem psicanalítica, com seu approach que caminha na interioridade, num movimento de olhar de dentro para fora, lê o corpo da paciente com transtorno alimentar como uma tela onde está estampada sua história pessoal. Está atenta às variações da linguagem não-verbal, não se contentando com as expressões atuadas comportamentais, mas tentando acompanhar cada paciente na individualidade e singularidade de suas expressões que, muitas vezes, se apresentam pelo avesso.

Esta tarefa pertence à psicanálise… as pessoas que sofrem desses distúrbios sentem fome desse tipo de compreensão, que se dirige para além do corpo e das comidas e se aliviam ao finalmente experenciá-la.
Um dos sintomas mais difíceis nos TA’s são as distorções da auto-imagem corporal. Sendo um método verbal, o tratamento analítico tem como chegar nesse tipo de sintoma?

Quanto mais intensas forem as distorções da imagem corporal, maior a gravidade desses quadros, pois ficam mais evidentes a força e a intensidade das fantasias que, alterando a percepção de si retiram o indivíduo do acesso ao seu próprio conhecimento e da sua interação com o mundo, deformando a experiência e a impregnando de sensações de desprazer o tempo todo. Continuamos no terreno de contribuições da escuta e da fala psicanalíticas.

Para a psicanálise, e na sua opinião, faz sentido pensar que a nossa cultura de valorização extrema da magreza seja de fato um fator desencadeante da doença? Ou são os conflitos internos e inconscientes os maiores determinantes?

Na resposta à primeira pergunta, aponto a inter-relação de múltiplos fatores agindo conjuntamente para a eclosão de um transtorno alimentar. Não dá para dizer que um deles é mais desencadeante do que o outro. Daí a importância do atendimento em equipe, que tenta mergulhar e dar um espaço especial a cada dimensão e consequências dos transtornos: a medicina, com ênfase na psiquiatria, muitas vezes a endocrinologia, a ginecologia e a cardiologia , a nutrição com sua nuclear contribuição, a orientação familiar, o educador físico auxilia bastante quanto à regulação dos exercícios físicos, que, unidos junto ao profissional psi vão formar uma espécie de família-prótese e comporão um modelo de união de esforços em contraposição a atitudes de patrimônio do atendimento.

Os sintomas dos TA´s são característicos de alguma estrutura psíquica em particular (neurose, psicose, perversão, etc) ou eles transcendem esse tipo de classificação?

Essa pergunta colocada em último é muito acertada, pois é ilustradora do que foi discutido nas anteriores. Na sequência da 4ª reposta, o leitor já pode responder por si essa questão, percebendo a multiplicidade de dimensões encontradas nos transtornos alimentares.

A partir de toda essa complexidade discutida e da especificidade e singularidade de cada situação, como enquadrar esses fenômenos alimentares numa mesma classificação? Como apertar um indivíduo tão singular em seus sinais de perturbação dentro de uma categoria nosológica isolada?
Até os manuais médicos de diagnóstico tem para as anorexias e bulimias um lugar especial e onde elas existem por si dentro do índice geral dos transtornos da alimentação.

Os transtornos alimentares, e em especial, as anorexias e as bulimias, fazem um passeio por entre as variadas psicopatologias referidas pela psiquiatria e não se encaixam em nenhuma delas, ao mesmo tempo em que as contemplam, nos mais diferentes graus.
Sintomas de alto sofrimento para quem deles se aproxima, mas que se forem acolhidos por companhias com um bom apetite para o trabalho, culminarão em nutrição saudável para todos.

Referências
1- KRISTEVA, J. (2002) As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
2- PHILIPPI, S.T. e ALVARENGA, M. Transtornos alimentares. Uma visão nutricional. São Paulo: Manole, 2004, p. 42.
3- RIO, L e RIO, T. Diários da anorexia. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2004.
4- DEL PRIORE, M. De corpo a corpo com a mulher. Pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: SENAC, 2000, contracapa.
5- WILLIAMS, G. (1997) Reflections on some dynamics of eating disorders: “no entry” defenses and foreign bodies in International Journal of Psychoanalysis, 78, 927.

*Marina Ramalho Miranda é psicanalista, membro efetivo e docente pela SBPSP. É Mestre e Doutora pela PUC-SP.



Comentários

One reply on “Transtornos Alimentares”

Márcia Pereira Guaita disse:

Não se reconhecer no próprio corpo, não identificar-se com ele, mesmo que agudamente, numa crise, me parece uma dissociação violenta e dolorida. Lembra o ódio do seio mau de Melanie Klein esparramado em todo corpo. O seio que contém alimento também contém a gordura que tanto é repudiada. O emagrecimento, com margem de segurança, corrói os nervos. O controle, torna-se cansativo, menos efetivo com o tempo, mas jamais perdido…
E pensar que existe uma dieta chamada “jejum intermitente”! O transtorno alimentar é por si só um jejum intermitente! Tem muito trabalho pele frente! O banquete está servido!

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