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Um inventário de saudades

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Talvez seja esse o trato: não há como permanecer vivo sem sentir falta de algo. Todos nós temos um inventário de saudades que ganha ao longo da vida mais elementos. A lista é longa e os itens crescem conforme andam os ponteiros do relógio.

O filme Aftersun foi motivado pelas saudades que a diretora, Charlotte Wells, sentia do pai. O desejo era de contar para o mundo todo que ele havia existido. Ela deu a eles uma cena inesquecível de uma dança sublime. Ao fundo, tocava Queen, this is our last dance, this is our song. E a música combinava tanto com a cena, de um jeito tão doce, que a saudade se transformou numa coreografia espontânea bonita que lembrou todas as últimas danças de todas as pessoas que assistiam. Já não era mais só a violência e o buraco da saudade, existia também uma cena de ternura. Sentimento que floresce em quem assiste ao dueto dos atores Frankie Corio e Paul Mescal numa das últimas cenas do filme.

Jonathan Safran Froer diz no livro Tudo se ilumina que “o vazio é a regra da vida”. Nossa existência começa em um buraco, é preciso que o espermatozóide fure o óvulo para que se forme o embrião. A origem do mundo começa num buraco do corpo e termina num buraco de terra.

A humanidade caminha junto com a soberania da falta. Para Lacan, é ela que impulsiona o desejo, nosso componente central, onde se estrutura a linguagem. É na ausência da mãe que o bebê aprende a cantar, falar e brincar (por um tempo suportável, é claro). Sem a falta, o sujeito não busca objetos de desejo, não sonha.

Nas palavras de Freud: “é preciso amar para não adoecer”. A incompletude é responsável pelo meu desenvolvimento. Porque não me basto, procuro o outro. Me associo, crio. Podemos pensar que o sentimento mais poderoso do mundo, o amor, é complementar ao mais temido: a ausência. Amo porque não estou completa. Trabalho, pois falta dinheiro. Faço amigos para espantar a solidão. Não me basto, por isso crio laços. Produzo, porque há algo que preciso comunicar. Me falta o ar, respiro. Falta é o que dá força ao movimento. É curioso como a palavra está associada sempre ao verbo fazer: Faz falta. A falta faz. Faço, pois sinto falta.

Sem lacuna, não há espaço, só excesso. Nossa criação depende de espaço e também de lamento. Num movimento constante de completude e euforia, nada seria construído.

Na mitologia grega, a história da criação do universo é bastante ilustrativa: No início tudo estava unido. Céu e terra eram uma única coisa, não havia luz. Terra (Gaia) estava exausta de ser coberta pelo Céu (Urano). Ele encontrava-se deitado e estendido sobre ela, num movimento de cópula constante. Não havia luz, apenas noite. Gaia exausta e sufocada, grávida de uma série de filhos aprisionados, pois não conseguiam sair de seu ventre, combina com seu filho, o deus do Tempo (Crono) de castrar o pai Céu (Urano). Gaia constrói uma foice e entrega na mão de Crono, que corta as partes sexuais do pai. Num grito de dor, Urano se afasta de Gaia e se instala no alto do mundo, de onde não mais sairá. Suas lágrimas tornam-se as estrelas. Seus filhos, antes aprisionados, saem para a luz, ficando livres entre o tempo e o espaço. O oceano, a terra, e as florestas e as montanhas ganham vida. “Como Urano tinha o mesmo tamanho de Gaia, não há um só lote de terra que não encontre lá em cima, um pedaço equivalente de céu”, diz Jean Pierre Vernant em O Universo, os deuses e os homens.

Sobre sufocamentos, afogamentos e atropelamentos

Fico pensando se o sujeito contemporâneo não se sente tal como Gaia, sem espaço, sufocado. Por informações, imagens, conteúdos. Criamos conteúdo incessantemente, mas o sentimento de esgotamento é uma marca dos tempos atuais, assim como a sensação de esvaziamento. Talvez não seja à toa que o mal contemporâneo seja o burnout, o TDAH e a depressão. Há uma sensação permanente de estarmos consumidos, sobrecarregados, ao mesmo tempo em que falta algo que dê substância.

Talvez essa substância ausente seja exatamente a elaboração de nossas faltas, a assimilação de nossos aprendizados a partir dos lutos, das dores, das perdas e ausências. Numa cultura de excessos, há espaço para a falta?  Cabe a dor nesse tempo de pressa e urgência? Se tudo é tão facilmente substituído, o que aprendemos com nossas saudades?

Importante refletir sobre esse pensamento atual, que impõe ao sujeito a lógica do constante pensamento positivo e da superação. Ideia que vai na contracorrente do pensamento psicanalítico, que vê a sublimação como o destino ideal da dor. Ela precisa ser transformada, para que uma falta seja elaborada, é preciso de tempo. Este é o único capaz de mudar uma falta de prateleira dentro da nossa alma. O tempo transforma a dor. Cronos, essa divindade poderosa, tem muito a nos auxiliar. Mas é para isso é preciso paciência, uma palavra que está quase em desuso.

Quando Freud fala do desligamento da energia (libido) nos objetos de amor, usa a palavra paulatinamente, isto é, aos poucos. Durante o processo de luto, o aparelho psíquico vai gradualmente entendendo que perdeu o objeto de amor. Por um tempo, a dor da perda é o que resta para aquele que perdeu, como se a saudade fosse essa espécie de souvenir deixado pela energia que antes era investida no amado. Aline Bei sintetiza esse sentimento numa frase: “Saudade é amor, e é dos vivos”.

Por isso, penso que a fala “reage, bota um cropped!” tem muito mais a ver com a atuação do que com reflexão. Reagir remete ao impulso. Trata-se de uma resposta que se assemelha à descarga, e não à cicatrização.

É preciso fazer as pazes com as nossas faltas. Como diz a autora Matilde Campilho: “foi com o tempo que eu fui me acostumando com essa coisa da saudade”.

O correr do calendário traz marcas, faltas, rugas, rastros. No entanto, acredito que o importante é o que fazemos a partir destas perdas, já que como diz a autora Elizabeth Bishop: “todas as coisas contêm em sim o acidente de perdê-las”. Sempre estaremos assombrados pelo fantasma da falta. E a arte de perder é algo que vivemos tentando dominar ao longo da vida. Lila, a inesquecível personagem de Elena Ferrante, dizia: “Cada um conta a vida como quer”. A habilidade de ressignificação de nossas faltas é marcada pela nossa subjetividade, pelas nossas ferramentas internas de ressignificação. Não pela prontidão com que reagimos às dores das ausências.

Drummond dizia: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim”. A assimilação de nossas ausências é parte importante da nossa identidade. Como diz Freud: somos constituídos por uma serie de lutos, todos os nossos buracos são também quem somos. Nossos avessos revelam nossas necessidades e também novas possibilidades.

É preciso fazer as pazes com a incompletude inerente à condição humana. Sem ela, viveríamos sempre numa condição estéril.

Sem a falta não existiriam poemas. Sem o silêncio, não seriam compostas as canções. Sem os buracos, não plantaríamos flores. A vida estaria numa constante paralisação. Voltando ao mesmo poema de Drummond, quando fala sobre a acomodação da ausência: “E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.”

É preciso aceitar o convite para a dança da ausência sem medo do buraco que ela deixa. É preciso confiar na nossa capacidade de desabrochar as flores em nossas faltas. This is our last dance, this is our song.

 

Helena Cunha Di Ciero é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Fotografia: Helena Cunha Di Ciero 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.      



Comentários

7 replies on “Um inventário de saudades”

Taís barreto disse:

Helena com seus textos sensíveis e palavras que brotam na melhor tradução do sentimento!

Heloisa de Souza Sampaio disse:

Cara Helena, que beleza ler um texto tão rico. As imagens sobre a saudade e a falta estão muito bem colocadas. Entre tantos elementos, esse último mencionado, de que precisamos da “ausência assimilada e aconchegada” Vamos nesse processo.

Ester Sandler disse:

Profundo, profundamente verdadeiro, como a beleza da escrita. E o belo é eterno
Obrigada Helena

Carol Barros disse:

Lindo texto!

Antonia Maria de Almeida Camargo disse:

Lindoooo ! …e verdadeiro !!!

Sandra Costa disse:

Amei o texto!

Angela Soares disse:

Tocante.

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