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Um necessário diálogo entre a Psicanálise e as Ciências Humanas

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AMF – Associação dos Membros Filiados ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

“Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la” (George Santayana, The Life foi Reason, 1905)

 

Diante dos recentes discursos de ataques às ciências humanas em nosso país, e suas possíveis consequências, a Associação dos Membros Filiados (AMF) ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), decidiu promover um ciclo de encontros entre a Psicanálise e as Humanidades.

O primeiro diálogo proposto foi entre a Psicanálise e a História, em torno do tema “O Autoritarismo no Brasil”. Recebemos como convidadas a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, da Universidade de São Paulo (USP), e a psicanalista Noemi Moritz Kon, do Instituto Sedes Sapientiae, numa conversa mediada por Flávia Steuer, fonoaudióloga e psicanalista, membro filiado ao Instituto de Psicanálise da SBPSP e do departamento de Psicanálise do Sedes. A escolha destas convidadas, oriundas de diferentes instituições, foi intencional e marca o desejo de que este diálogo abra as fronteiras entre as instituições, a fim de que possamos conversar e nos envolver em uma mobilização conjunta.

Em clima de conversa, Lilia nos trouxe um apanhado de seu recente livro, “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” (Companhia das letras, São Paulo, 2019), e nos apresentou o conceito de “democradura”, para designar um fenômeno em expansão no Brasil e em outros países do mundo, em que as instituições democráticas se vêem ameaçadas.

Nas “democraduras”, o adversário político é transformado em um inimigo a ser combatido, diferentemente do que se espera nas democracias, de fato, onde os adversários são importantes e, jogar com as diferenças, é fundamental para o fortalecimento da democracia. Afinal, numa democracia plena não se espera que as diferenças desapareçam, muito pelo contrário, seu bom funcionamento depende do diálogo e da convivência entre os diferentes.

Lilia fez também uma retomada histórica da constituição do povo brasileiro e do papel da escravidão em nossa cultura. Mostrou como o modelo escravocrata, de domínio e de submissão, preconceituoso e intolerante ao diferente, está presente até hoje e enraizado em nossa cultura, embora durante muito tempo tenhamos nos acreditado um povo tolerante, pacífico e pouco preconceituoso.

Em uma pesquisa realizada na USP, na década de 90, pessoas foram questionadas se elas se consideravam preconceituosas e 99% dos entrevistados responderam que não. A seguir, perguntou-se se conheciam alguém preconceituoso e 97% disseram que sim, e reconheceram pessoas próximas de si como preconceituosas (familiares, amigos, vizinhos). Este é um dado espantoso e revelador de como o brasileiro se sente “uma ilha de democracia cercada de preconceituosos por todos os lados”, como citado por Lilia.

Nas últimas eleições, a intensa polarização se mostrou no jogo do “nós contra eles”, deixando explícita a intolerância de todas as formas, como podemos verificar pelo aumento da violência e da discriminação por cor, raça, gênero e religião. No entanto, este não é um fenômeno recente, mas algo que se repete na história de um país que foi fundado em bases escravocratas e de intensa desigualdade social, de oportunidades e de acesso a educação, saúde, moradia, entre outras.

Noemi entrou na conversa para introduzir em que medida a Psicanálise dialoga com a cultura e com a história do Brasil, e como poderia contribuir para o entendimento e o enfrentamento das intolerâncias em nossa sociedade. A Psicanálise, tanto na clínica quanto na instituição psicanalítica, nos permite revelações. Em nossas clínicas, vemos os efeitos que a história e os acontecimentos sociais do país provocam em cada sujeito, e consequentemente, em nossa cultura. O psicanalista, além de sujeito da própria cultura, tem um papel fundamental de testemunho das marcas que estes acontecimentos deixam no psiquismo de cada um e da coletividade.

A cultura nos veste como uma segunda pele, complementa Lilia, de modo que não a vemos mais, e assim não a percebemos. É papel das ciências humanas em nos auxiliar para iluminá-la.

Em nível institucional, Noemi compartilha que uma aluna do Instituto Sedes Sapientiae denunciou uma fala  racista, durante uma aula, revelando algo que antes estava invisível, e permitindo a abertura de um espaço de reflexão e de produção de conhecimento. A abertura desta escuta levou à formação de um grupo de psicanalistas atentos à questão racial, e à publicação do livro “Racismo e o Negro no Brasil. Questões para a Psicanálise” (Perspectiva, São Paulo, 2017).

Como na aula citada por Noemi, certamente nos deparamos, diariamente, com manifestações preconceituosas, na vida pública e na vida privada. Por vezes, percebemos incomodados que essas manifestações são nossas, como muito ilustrou a conversa com o público presente neste evento, majoritariamente branco. A SBPSP, teve como uma de suas pioneiras Virgínia Leone Bicudo, mulher, socióloga e negra, mas é uma instituição marcada por predominante presença de brancos, com maior poder econômico. O que mais uma vez revela a cultura de nosso país, onde o conhecimento e as instituições de formação ainda não são acessíveis a todos. Em momentos como esse, não cabe nos apegarmos à nossa frágil ideia da ilha de democracia, mas nos darmos conta do esforço constante que é necessário para reconhecermos e cuidarmos do preconceito e da desigualdade, presentes em cada um de nós.

A escuta psicanalítica não está inerte diante dos fatos históricos e sociais, ela é sensível a eles, promovendo assim uma abertura de nossas clínicas e práticas. Muitos trabalhos estão sendo desenvolvidos fora dos consultórios de análise. Trabalhos em diversas instituições que buscam uma conexão com o que pulsa na cultura e na sociedade, para além de nossos muros. O Sedes conta com uma clínica social, assim como instituições acadêmicas como USP e PUC, entre outras. A SBPSP, por meio da Diretora de Atendimento à Comunidade (DAC), possui um Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) com custo acessível, além de parcerias com diversas instituições, junto às quais desenvolve diferentes trabalhos de escuta e intervenção.

Pensamos  num paralelo entre a Antropologia, que se ocupa da história do homem como povo,  e a Psicanálise que se ocupa da história do homem em sua subjetividade, que não deixa de ser marcada pela história do homem antropológico, incluindo suas origens, cultura e costumes, que ao não ser reconhecida, é repetida por todos e cada um de nós, como povo e como indivíduos.

Lilia finaliza sua fala, no evento, citando Guimarães Rosa, que segue ressoando em nós:

“A vida é assim:  esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

 

A AMF é a associação que reúne os membros filiados ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Esse grupo conta hoje com 345 integrantes: médicos, psicólogos e outros profissionais, que têm a psicanálise como referencial teórico e instrumento de trabalho clínico.

Imagem: Shutterstock.com 



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