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Vice: o poder revela

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* Julio Hirschhorn Gheller

Farei algumas considerações a respeito do filme Vice, que narra a trajetória daquele que foi o vice-presidente mais poderoso dos Estados Unidos. Podemos acompanhar como alguém destituído de carisma, um estudante medíocre, dado a bebedeiras e que foi expulso da universidade, chega a uma posição de tamanha relevância.

Observamos o papel essencial de sua esposa Lynne, que injeta ambição em Dick para que ele deixe de ser o que parecia ser um perfeito projeto de fracasso pessoal, um loser em potencial. Após receber um ultimato, em que a mulher ameaça deixá-lo, ele se apruma e vai à luta, conseguindo um estágio que o inicia na carreira política.

A partir da experiência como assessor de Donald Rumsfeld, um mestre a lhe ensinar os segredos dos bastidores da Casa Branca e do Congresso, ele vai se transformando em uma raposa, desejosa de experimentar o gosto do poder. O seu olhar brilha ao comentar o aperto de mão com o presidente Nixon.

Percebemos que ele começa a ser tomado por uma espécie de narcisismo grandioso. A pista é dada pelo seu sogro, quando diz que Dick se acha o “fodão”. Sim, provavelmente, ele anseia por dar a volta por cima e triunfar sobre os fracassos do passado. Este será o combustível a impulsioná-lo daí para a frente.

Vai subindo de posto e chega a ser nomeado chefe de gabinete do presidente Ford, que sucedeu a Nixon depois do escândalo de Watergate. Cada vez mais ele se aprofunda no conhecimento da máquina governamental em seus meandros internos.

O papel decisivo de Lynne como propulsora da campanha de Dick para o Congresso – logo após o primeiro de uma série de infartos – confirma sua importância como a força motriz que liga o botão narcísico de Dick, incentivando-o a crescer. O discurso dela, ao assumir a campanha do marido enfermo, é raso: baseia-se em uma reducionista noção do “certo contra errado”. No entanto, a energia e convicção da comunicação cativam um público conservador e de visão curta, conseguindo eleger Dick.

Ao ocupar o cargo de secretário da Defesa de Bush pai, sexto posto na hierarquia do poder, Dick chega a sonhar com a presidência. Logo cai em si e desiste, pois o fato de ter uma filha lésbica seria explorado contra ele por qualquer adversário.

Depois dos anos Clinton, período em que enriquece como CEO de uma grande petrolífera, é chamado para ser vice de Bush filho, por quem nutre evidente desprezo. Aproveita a fragilidade do futuro presidente e impõe a condição de dividir funções com ele. A reivindicação é atendida e ele vai acabar comandando áreas vitais como segurança, orçamento e política externa. Aliás, desde a tumultuada transição do governo Clinton para o de Bush – com a séria suspeita de fraude na apuração de votos na Flórida – ele já vai manobrando para colocar seus homens de confiança em postos-chave. Inclusive, seu antigo mestre, Rumsfeld, será o novo secretário da Defesa.

Logo, o veremos procedendo como o mandatário do país no fatídico 11/09/2001, dia do ataque às Torres Gêmeas, e daí para a frente será o artífice da campanha antiterrorista e, especialmente, da invasão do Iraque, sob o pretexto de que o líder Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, acusação esta que nunca foi comprovada. Os fabricantes de armas e as indústrias de petróleo agradeceram por seu ímpeto bélico.

O ataque ao Iraque produz grandes perdas, que não resultam em nenhum sinal de arrependimento de sua parte. Assim como no emblemático episódio da caçada, em que ele acerta um tiro em um integrante de seu grupo. Quem se desculpa – por mais incrível que possa parecer – é o indivíduo que levou o tiro, lamentando ter estragado o fim de semana de Cheney.

As críticas à invasão do Iraque aumentam, pedindo sua renúncia. Ele, então, manipula o presidente para que demita Rumsfeld, seu antigo mentor. Rummy lhe diz: eu não sabia que você era “such a cold son of a bitch”.

Quando a campanha de eleição da sua filha mais velha para a Câmara dos Representantes ameaça fracassar, ele a autoriza a condenar expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, num esforço para conquistar o eleitorado conservador. Aparece aí o trator que não tem escrúpulos.  Assim como havia feito com Rumsfeld, joga a própria filha caçula aos leões.

Não se arrepende de nada. Diz em entrevista: “Não faço questão de parecer bonzinho. Fiz o que precisava ser feito para proteger o país”.

Podemos deduzir que o exercício do poder revela sua faceta autoritária e truculenta. Ele alcança a satisfação narcísica de derrotar quem quer que venha a se interpor no seu caminho. Trata-se da irresistível experiência de fruição de um gozo embriagador. Refiro-me ao prazer obtido à revelia das interdições, embutindo o escárnio e o desafio da lei. “A lei, ora a lei; a lei é para ser interpretada do jeito que me convém”, deve pensar ele.

Estamos diante de alguém que exibe arrogância, onipotência (posso tudo!), onisciência (sei tudo!) e negação da realidade. São traços indicativos do que pode ser entendido como a parte psicótica da personalidade, existente em todos os indivíduos (até os psiquicamente mais saudáveis), emergindo em certas circunstâncias. Cheney não tem a capacidade de reconhecer erros, admitir os danos por ele causados e sentir culpa. Sendo assim, é incapaz de sequer esboçar uma tentativa de reparação dos males que provocou. A condição de reconhecer culpas e reparar danos indica o amadurecimento de quem não permaneceu fixado na perspectiva maniqueísta do tudo ou nada, do completo bom versus o completo mau.

A trama me leva a pensar na destrutividade tal como discutida por Freud em Mal-estar na Cultura. Ao elaborar o conceito de pulsão de morte, expressa o seu ceticismo em relação ao ser humano. Para que a civilização prevaleça é necessário modular e controlar os instintos sexuais e agressivos, aceitando fazer as necessárias renúncias pulsionais. Freud relembra que o homem é o lobo do próprio homem. O ser humano não é gentil por natureza, pois é evidente sua inclinação para a agressão. Se puder explorar a força de trabalho do outro sem recompensá-lo, ele o fará. Se puder aproveitar-se sexualmente do outro sem seu consentimento, ele o fará. Não se importará em humilhá-lo e tripudiar sobre ele. No seminal artigo de 1930, ele enumera diversos exemplos históricos de barbárie, inclusive aquele que era, na época, o mais recente: a primeira Grande Guerra Mundial de 1914-1918. Ele ainda viveria o terror da segunda Grande Guerra, quando, idoso e doente, teve que fugir da perseguição nazista, indo para Londres, onde veio a falecer.

Sabemos que em 1930 ele já havia perdido uma filha e um neto. Desde 1923 lutava contra um câncer no palato e mandíbula. Ao morrer, em 1939, já havia passado por cerca de 30 cirurgias e falava com muita dificuldade. Ainda assim, continuava produtivo e escrevendo. Era um exemplo de que as forças de vida estão relacionadas à capacidade de pensar, discernir e discriminar os elementos da realidade. E, mais do que tudo, estão na base do empenho em buscar as melhores maneiras de lidar com a realidade, por mais sombria que ela seja.

 

 

*Julio Hirschhorn Gheller, é médico pela Faculdade de Medicina da USP; Residência em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP; Psicanalista, Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP.

 



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