Frente ao momento político, social e cultural em que vivemos, em meio a uma pandemia de proporções inimagináveis, sentimos um prazer muito especial em lhes apresentar uma nova Diretoria da Sociedade, constituída por meio da interlocução e esforço conjunto de muitos colegas dedicados à vida institucional, inseridos em diversos setores e em diferentes grupos. Colegas analistas que aceitaram o desafio da busca de uma comunicação que pudesse atravessar não só o isolamento social em que nos encontramos, mas também as cesuras dos diferentes referenciais teóricos, das diferentes “linguagens de tribos” que nos constituem (Kaës, 1989), para nos reunirmos em torno de um objetivo comum, o amor e o cuidado pela nossa Sociedade.
Agradeço a Diretoria anterior na pessoa de Bernardo Tanis, Presidente que me antecedeu, pela generosidade e disponibilidade durante o processo de transmissão. Agradeço a todos os colegas da SBPSP que votaram e depositaram sua confiança nesta atual diretoria composta por amigos competentes e dedicados à Sociedade, a quem muito aprecio e admiro.
Penso que uma das justificativas para uma Sociedade de Psicanálise é a possibilidade de agregar um grupo de psicanalistas numa associação que se disponha a cuidar do desenvolvimento e vitalidade da Psicanálise e da Formação Psicanalítica. Essas funções tornam-se possíveis por meio da criação de espaços para diálogos e trocas, tanto internas entre seus membros, como externas, com a sociedade e a cultura na qual estão inseridos, bem como a interlocução com outros campos do conhecimento. Nossa Sociedade, sobretudo pela pluralidade que a caracteriza e mantém ao longo dos anos, fomenta e cria a possibilidade de compartilharmos diferentes experiências, não só com a finalidade de encontrar uma visão comum e matrizes identificatórias, como também para encontrar um outro olhar, o diferente/estranho, que nos obriga a questionar o familiar, o já compreendido, possibilitando o desenvolvimento do pensamento psicanalítico de seus membros.
Similaridades e diferenças, identidade e alteridade, confrontos e complementaridades, sofrimentos e satisfações constituem elementos indispensáveis para a construção do conhecimento e expansão psíquica do indivíduo, do grupo, da instituição e da sociedade de modo geral. O debate aberto torna a relação institucional mais transparente, mais criativa e, portanto, mais confiável e sólida nos nossos propósitos de torná-la objeto de pensamento. A nossa tão conhecida hostilidade e recusa do diferente que ameaça a coesão dos grupos, está também presente em nós mesmos, constituindo um obstáculo à nossa tarefa comum de amadurecimento grupal/institucional. Acreditamos ser um grande desafio a possibilidade de encontrar uma comunicação capaz de atravessar as diferentes cesuras, tanto dentro como fora da Instituição.
Desde o momento em que aceitei o convite para que assumisse essa empreitada, tenho refletido de maneira profunda sobre nossa Instituição. Refletir no sentido de dar um passo para trás, des-misturar-se e examinar o seu objeto de reflexão como um outsider, porém levando em conta as experiências de um insider. Em uma instituição como a nossa, se conjugam não só a natureza e as imposições de sua tarefa primária, que acredito serem o cuidado e o desenvolvimento da Psicanálise como um campo específico do saber e a formação de futuros analistas, como também a sua história e a sua estrutura (Kaës, 1989).
Nossa Sociedade tem uma bela história. Se pensarmos com Fernando Pessoa que “Deus quere; o homem sonha; a coisa nasce”, ela teve início em 1919, quando Durval Marcondes, então um jovem estudante de medicina, se apaixona pelas ideias de Freud, apresentadas em um artigo pelo seu professor Franco da Rocha, como uma nova concepção da mente humana. Em 1927, já formado em Medicina pela FMUSP, ele funda a Sociedade Brasileira de Psicanálise, a primeira da América Latina, que durará alguns anos e será o embrião do Grupo Psicanalítico de São Paulo, oficializado pela IPA em 1944, agora com Adelheid Koch como analista didata, vinda da Alemanha com sua família, refugiada da 2ª Grande Guerra. A nossa SBPSP, tal como a conhecemos hoje, foi ratificada pela IPA em 1951 e neste ano estaremos comemorando seus 70 anos!
Durval Marcondes e eu temos um ponto em comum: assim como ele, fui fisgada pela Psicanálise aos 16 anos, quando ganhei do meu pai, cirurgião livre-docente na FMUSP, um exemplar de Psicopatologia da Vida Cotidiana de Sigmund Freud. Em um certo dia de 1975, já estudante de Medicina na FMUSP, um jovem professor da Psiquiatria, com os cabelos lisos pelos ombros, presos num rabo de cavalo, fez com que eu me apaixonasse definitivamente pela Psicanálise: nosso Luiz Tenório de Oliveira Lima. Em 1981, fui aceita para iniciar minha formação psicanalítica no Instituto Durval Marcondes.
Como dizia, nesse processo de reflexão que me acometeu, não pude deixar de recapitular minhas experiências nesses últimos 40 anos, desde que essa casa me acolheu. Apenas em 1992 comecei a ter participações mais ativas nas questões institucionais, principalmente através das diversas comissões das quais fiz parte. Desde então, um longo caminho foi percorrido por mim e também pela nossa Sociedade. Fora da nossa Instituição, participei durante 5 anos do Comité de Educación da Fepal coordenado pelo Dr. Norberto Marucco, colega argentino brilhante e de incrível generosidade; depois trabalhei 6 anos no Oversight and Education Commitee da IPA e 2 anos em uma Comissão de Relações da IPA com as Sociedades Componentes. O que percebi durante esses anos, em contato com Institutos e Sociedades de todo o mundo é que não só a nossa história é muito bonita, mas temos uma Sociedade muito boa e competente, muito rica e democrática, com um Instituto único em possibilidades de exposição do candidato às mais diferentes teorias psicanalíticas, à livre escolha dos inúmeros cursos eletivos oferecidos pelos nossos docentes, com o consequente aprofundamento nos autores que lhe fazem mais sentido.
Ao longo desses 40 anos, verifico que a SBPSP continua sendo pensada como uma instituição forte, doadora de identidade analítica e cuja pertinência é valorizada pelo nosso grupo e pela sociedade, sendo que o membro se sente representado por ela coletivamente e, reciprocamente, sente que a representa individualmente.
Podemos constatar um vértice predominante entre os membros de que a força e poder da nossa Instituição estão alicerçados na qualidade e abrangência de nossa formação, enriquecida pela pluralidade teórica e a ênfase na análise pessoal, supervisões e prática clínica. Nos últimos anos tem havido uma valorização do chamado quarto pé da formação, maior acolhimento e participação dos Membros Filiados na Instituição, assim como uma crescente inserção da Sociedade na comunidade. São características consideradas como parte do nosso patrimônio e que nos diferenciam positivamente de outras instituições. Há um sentimento predominante entre os membros de que a diversidade deve ser preservada, garantindo-se o espírito democrático, de modo que todos os grupos tenham espaço dentro da Instituição, tanto na formação dos Membros Filiados como em todas as atividades científicas e administrativas. A pluralidade pode ser aqui destacada como um fator positivo que nos obriga a rever-nos constantemente como Instituição.
Acredito que essas concepções e sentimentos que nós, membros, temos pela SBPSP mantêm-se ao longo dos anos porque nossa Sociedade nunca permaneceu estática, acompanhando a “evolução dos tempos”, por assim dizer, porém sem abandonar o que nos identifica frente a outras instituições psicanalíticas, uma identidade própria, sem esquecer a nossa história. Ao longo do tempo, desde que aqui cheguei, observo uma significativa evolução do ponto de vista institucional como consequência do nosso desenvolvimento e amadurecimento como instituição.
Atualmente, somos 497 Membros Efetivos/Associados e 348 Membros Filiados. Em nossa Diretoria do Instituto, assumimos o compromisso ético de promover uma formação de qualidade, séria, comprometida diante dos legados que recebemos e, ao mesmo tempo, atenta às transformações históricas e culturais que não cessam.
Assim como valorizamos o pensamento clínico que é a nossa tradição e ocupará um lugar central em nossa Diretoria Científica e nossa Diretoria Regional que integra atualmente 22 cidades do estado de SP, continuaremos desenvolvendo os projetos sociais, culturais e a interlocução com diferentes áreas do saber que enriquecem o conhecimento psicanalítico através da Diretoria de Atendimento à Comunidade em suas três vertentes, Serviço de Atendimento à Comunidade, Convênios e Parcerias e Cursos e Jornadas abertos, como também da Diretoria de Cultura e Comunidade e da Revista IDE.
Esperamos continuar trabalhando com o apoio e compromisso de todos os membros, para que juntos tenhamos uma Sociedade cada vez mais forte, coesa e que continue na liderança de um fazer psicanalítico que envolve uma atitude de interrogação, busca e evolução permanentes, com atenção às demandas peculiares de um mundo que parece ser cada vez mais insalubre e hostil ao que caracteriza o humano.
Sto. Agostinho há 15 séculos, definiu povo como sendo um conjunto de indivíduos unidos por um mesmo objeto de amor. Parafraseando-o eu poderia dizer, um grupo de pessoas que compartilham um mesmo sonho. Certamente o objeto de amor que, no passado, motivou Freud a criar a IPA e, alguns anos depois, Durval Marcondes a criar a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e que, na atualidade, se constitui no elemento unificador de todos nós seus membros, é esse sonho/ideia que chamamos Psicanálise.
Carmen C. Mion
Presidente da SBPSP